A oração mental capuchinha, mestre dos frades
“Não cessa de orar quem não cessa de fazer o bem" (Bernardino Ochino)
"Mas não seguirá fazendo o bem quem cessa de orar" (Bernardino de Asti)
A espiritualidade franciscana nasce do encontro de Francisco com o Cristo pobre, humilde e crucificado. Isso se dá num itinerário vocacional composto por vários fatos como a prisão e a doença, encontro com os leprosos, encontro com o crucifixo em São Damião e o Evangelho, o despojamento perante o bispo e a cidade, outras diversas experiências nos entornos de Assis nas grutas que ali encontrava, na chegada dos irmãos. Esses encontros marcam o início de tal caminho traçado por Francisco e se estende até o fim da sua vida com tantos outros como: o envio dos irmãos, o encontro com o Sultão, as Irmãs Pobres de São Damião, a itinerância, o aumento do número dos irmãos, as exigências de uma regra de vida, as crises, a doença nos olhos, os eremitérios, os estigmas e o desejo do retorno aos inícios.
Mas não somente a vida do Povorello de Assis é marca da espiritualidade franciscana. Diversos irmãos e irmãs enriqueceram a experiência inicial fundada em Francisco. Esses outros itinerários foram ao longo da história da família franciscana aprofundando aquilo que nasce nos inícios do século XIII.
Todos esses irmãos e irmãs vivenciaram a dinâmica e a dupla vertente complementar desse carisma: a vida apostólica e a vida contemplativa. Uns enfatizando um aspecto, outros a outra vertente da herança espiritual franciscana. Tornando, assim, um carisma e espiritualidade não somente de vida ativa ou somente de vida contemplativa, mas uma vida contemplativo-apostólica, esta que, para Francisco e Clara e seus primeiros irmãos e irmãs não eram dinâmicas distintas, mas um mesmo caminho de seguimento do Evangelho.
Dentro desse dinâmico carisma nasce no século XVI a reforma capuchinha que teve como ideal nascente os eremitérios e a vida de uma pobreza radical marcada pela itinerância, sobriedade e proximidade com o povo, de forma especial, com os pobres. Assim, as dimensões apostólica e contemplativa são essenciais na nascente reforma da ordem franciscana garantindo a fidelidade ao carisma de Francisco e os primeiros confrades. Com essa dinâmica complementar da ordem capuchinha de vida eremítica e apostólica anova ordem é reconhecida pela igreja como distinta das outras obediências franciscanas.
Assim, a ordem capuchinha pode ser mestra da espiritualidade, de forma especial, no que concerne à forma de contemplação próprias da vida franciscana. No seu apostolado simples levou ao povo a conhecida oração mental como escola do encontro com Deus e significação e ressignificação do encontro com o outro.
Os documentos da Ordem dizem que a oração mental é “mestra espiritual dos frades” (Constituições Capuchinhas de Santa Eufêmia 3; Constituições Capuchinhas 54, 2) e exige dedicação de tempo diário para isso. Nos primeiros documentos se falam em uma hora obrigatória (Ordenações de Albacina 8), mas que nenhum dos frades se contente-se em fazer somente esse período e dedique-se mais uma, duas ou três horas para a oração mental. Nas primeiras constituições (Santa Eufêmia - 1536) para os mais ‘tíbios’ se estabelecem duas horas. E nas últimas revisões das constituições, que retomam os primitivos textos, estabelecem que cada frade, “onde quer que esteja, reserve diariamente o tempo suficiente para a oração mental, por exemplo, uma hora inteira” (Const. 55, 2).
O tempo suficiente não é um tempo cronometrado, mas um tempo de significado. E o cultivo diário faz com que não seja um tempo obrigatório, que não seja do mínimo exigido, mas seja um tempo habitual e essencial na vida de irmãos menores. Isso porque a vida e o espírito de oração têm o primado na espiritualidade franciscana capuchinha.
A oração dentro da perspectiva franciscana deve ser capaz de transformar a vida do orante. O irmão menor vai amadurecendo e aprofundando sua relação com Deus na vida de oração. E, dentro disso, a contemplação é o caminho de configuração com o Cristo. Santa Clara na terceira carta a Inês de Praga convida para que “transforme-se inteira, pela contemplação, na imagem da divindade” (3º CtIn 13).
Entendendo que esse caminho de configuração ao Cristo-Evangelho é pela contemplação os capuchinhos se tornaram mestres de contemplação e propagadores da chamada Oração Mental. O método capuchinho foi capaz de atingir as diversas pessoas do início da reforma. Desde bispos, clérigos, até aos mais simples do povo. Isso se dava, em primeiro lugar, na capacidade dos confrades de praticarem a oração mental e, posteriormente, ensinarem a simples forma de encontrar-se com Deus.
Nos diversos relatos dos santos capuchinhos encontramos esses como homens e mulheres de grandes períodos de oração mental ou secreta – como também chamaram esta. Desde os frades mais simples e iletrados irmãos leigos aos grandes intelectuais da ordem.
Nas hagiografias de São Félix de Cantalício, o primeiro santo capuchinho, se diziam que dormia bem poucas quatro horas diárias, que o frade que percorria boa parte do dia as ruas de Roma pedindo esmola, também, passava boa parte da sua noite em oração mental. Este dizia aos confrades “que nunca o Rei deverá ficar sozinho. Alguém sempre fará sentinela”.
São Lourenço de Brindes, doutor da ordem capuchinha, no período que exerceu o ofício de ministro geral, percorria longas distâncias a pé para visitar os frades. Ao chegar, mesmo com o cansaço da viagem, não se eximia da oração, estava sempre presente na prática da oração mental.
Já em São Serafim de Montegranaro encontramos uma referência para a grande perseverança e grande tempo em oração mental. As biografias dizem que a capela era como se fosse sua cela onde passava boa parte de suas noites em oração secreta. Essa que fez com que o fez apaixonado pelo mistério da cruz.
Também, em Santa Verônica Giuliani, mística da reforma capuchinha, temos uma união íntima com o Cristo crucificado que na oração mental encontrava o aprofundamento. No seu imenso diário é possível ver que a oração secreta e mental não só a fez amante do crucificado, mas que a transformou naquele que contemplou. Por isso, em seus relatos, apresenta que possuiu os estigmas de Cristo.
Com esses relatos é possível perceber que é marcada espiritualidade capuchinha a oração mental e que é parte da estrutura da santidade nessa forma de vida. Assim, nos leva a perguntar: no que constitui essa forma de oração que facilmente é praticada por uma diversidade deconcepções de frades e irmãs e por diversas pessoas?
No primeiro tratado sobre a oração mental capuchinha, escrito pelo mestre de noviços, frei Martial d’Etampes, ensina que o método é simplesmente se preparar, contemplar e concluir (D’Etampes, Martial. Tratado Fácil para Aprender a Fazer Oração Mental. trad. Amanda Furtado Sampaio, 2020).
A preparação se dá pela disposição em se praticar a oração. Após, se lê algo dos mistérios de Cristo e se medita sobre eles. Na segunda parte que consiste na contemplação é o simples estar diante de Deus, é a luz que se recebe da verdade de Deus. Por fim, na conclusão encontramos osfrutos da contemplação que é a luz que se irradia como portadores da luz que recebemos de Cristo (D’Etampes, Martial. Tratado Fácil para Aprender a Fazer Oração Mental. trad. Amanda Furtado Sampaio, 2020).
A oração mental é simples!
Nas constituições, novamente tomando os textos primitivos dizem que “orar não é senão falar a Deus com o coração” (Const. 54, 2). Isso assinala que a primeira questão da oração mental capuchinha é o afeto pela oração, o querer rezar que percorre a vida franciscana e a contemplação desde Francisco e Clara. É uma oração marcada pelos sentidos e pelos significados. É a primazia da vontade que é desenvolvida pelos mestres franciscanos na teologia e filosofia que, também,- embora de forma muito simples – assinala a forma de se fazer oração mental na vida capuchinha.
Clara de Assis nas cartas a Inês de Praga, em seu testamento e na regra, em diversos trechos convida a olhar (por exemplo, “olhe, considere e contemple” 2º CtIn 20; “olhe dentro desse espelho todos os dias” 4ºCtIn 15). Uma das atribuições e significados dessa palavra nos seus escritos é realmente o ato dos sentidos do corpo. Para ela o método precisa passar por nossos sentidos, precisamos ser afetados por aquilo ou aquele a quem contemplamos.
Assim, podemos perceber que para rezarmos segundo os capuchinhos rezam é preciso querer rezar, buscar a oração, amar aquilo que está fazendo. A oração mental é algo que precisa de encantamento para se praticar. Embora isso não signifique que não haverá momentos de tédio, de desânimo, mas é a disposição em buscar algo que se ama, que o afeta, que quero, mesmo que haja essas contradições.
Essa forma de orar é afetuosa e do querer e, além disso, silenciosa. Não é o fazer ou o falar, mas simplesmente estar diante de Deus no silêncio. Porque “não ora quem só fala a Deus com a boca”, mas é uma busca da união com Deus, uma busca de iluminação. A conformação é com o próprio Cristo que, também, é o mestre da união com o Pai. A busca é “por adorar o Pai em espírito e verdade, procurando cuidadosamente iluminar mais a mente e inflamar o coração do que proferir palavras” (Const. 54, 2). Por isso, a oração mental é estar em silêncio, mas de forma fecunda, tendo em vista o encantamento pela vida do próprio Cristo.
A oração secreta que se estabelece no silêncio, seja em fraternidade ou sozinho, não é para si mesma. Essa forma de rezar não é isolamento do mundo ou fuga desse mesmo mundo. A oração mental é uma escola de encontro com o Outro e com os outros.
Na contemplação do Cristo pobre, humilde e crucificado aquele que se dispõe à oração mental vai se transformando naquele que contempla. Assim a Ratio Formationis Capuchinha inverte aquilo que conhecemos como contemplação, ou melhor, assinala como é praticar essa forma de oração na perspectiva franciscana-capuchinha. Para a espiritualidade capuchinha “contemplar significa deixar-se contemplar; olhar, deixar-se olhar; amar, deixar-se amar, renunciando a qualquer vontade de apropriação de quanto foi contemplado. Todo o nosso esforço deve consistir em não fazer nada. Ele é o protagonista, não nós” (RF 97).
O assemelhar-se a Jesus Cristo faz com que a oração mental seja frutuosa gerando fraternidade, escuta aos necessitados. É a maneira de Jesus, olhando para ele e o contemplando que se passa do “silêncio à escuta, da solidão à solidariedade, da contemplação à compaixão” (RF 33).
É a compaixão do Cristo que se encarna e morre na cruz que o orante quer possuir. E no gesto do silêncio da oração mental chega à essa compaixão. Essa que, segundo frei John Corriveau, é definida como a “consciência espiritual da tragédia pessoal de um outro e a ternura esquecida de si com a qual se relaciona com esse” (Carta Circular ‘Aquele excessivo amor’,2003). Por isso, somente aquele que se torna um com Cristo é capaz de ter essa atitude apaixonada, entusiasmada e encantada pela vida, pelos irmãos e irmãos, pelo mundo-criação e ser capaz de deixar a si mesmo e entregar-se aos outros.
A história capuchinha mostrou uma ordem austera, simples, com positividade diante das realidades do mundo, com centralidade no Cristo crucificado, com liberdade de espírito em constante renovação e sempre na proximidade com o povo em sinais vivos de fraternidade e minoridade. Essas características são perenes ao longo dos séculos e ainda sinais da profética forma de ser franciscanos. Ao conhecer a espiritualidade capuchinha encontra-se com a maestria dos ensinamentos da oração mental que se praticada continuará a ser sinal do Espírito de Deus e de constante e necessária renovação que é capaz de ser sempre nova sem perder as suas raízes.