Amor fraterno desinteressado
O encontro de São Francisco com o Evangelho, lido e praticado, significou mudanças sensíveis em seu modo de perceber a si mesmo e de enxergar a realidade à sua volta. Passara a conceber a ideia de Deus com os “olhos do espírito”. Acolhera as pessoas e as criaturas com ternura. Tornara-se resoluto nas suas escolhas e no seguimento ao Evangelho. Encarara de frente os desafios da nova empreitada. A partir de então, o filho do mercador Pedro Bernardone abandonara o conforto e as seguranças familiares e enveredava os caminhos da mendicância. Despojava-se dos ideais cavaleirescos, para abraçar a Senhora Pobreza. Perdera o encanto pelo grupo de amigos, aventureiros de festas e banquetes, para tecer seu desconcertante projeto de vida.
Com base nas Fontes Franciscanas e em reflexões a respeito do carisma, sublinharemos alguns elementos que caracterizam a experiência do autêntico amor fraterno, no seio da comunidade franciscana, ontem e hoje.
Para Lázaro Iriarte, antes da instituição da irmandade, como ideal de vida evangélica, Francisco:
“descobriu o irmão. Na pessoa do irmão, encontrou o Cristo irmão. E através de Cristo e do seu Evangelho, foi assimilando e acolhendo a paternidade universal de Deus”.
A cada instante, dava-se conta do seu entrelaçamento com todos os seres humanos e com todo o universo criado. Superava a autossuficiência, caminhando para o outro; sem medo, nem estranheza. Transcendia seus costumes, suas ideias e seus afetos com transparente entusiasmo.
Em seu Testamento, não hesitara em afirmar: “E o Senhor me deu irmãos!” (cf. Test. 14). Encontrara, assim, um tesouro de grande valor. Por causa dele, não mediu esforços para guardá-lo, como aquele homem da parábola que investiu tudo que possuía para adquirir um campo, onde havia algo deslumbrante (cf. Mt 13,44). Curiosamente, a palavra “frater” (irmão) é uma das mais usadas por ele; aparece 306 vezes em seus escritos. Assim, ele reconhecia e valorizava a presença do outro como dádiva divina.
O Santo de Assis vibrava com a presença de cada um, como afirma Vitório Mazzuco: “Olha os seus companheiros com carinho e admiração. Vê neles este espírito de heróica liberdade e capacidade de doação. Exalta neles todo um mundo de valores. Cada um de seus frades é amado nas suas qualidades”. Com alegria, abraçou: Bernardo, Pedro Cattani, Silvestre, Egídio, Ângelo, Pacífico, Leão, Junípero, Masseo, Clara e tantos outros. Reunia gente letrada e analfabeta; de origem nobre, cavalheiresca; camponesa e destituída. Sob o teto da empatia, iniciou com eles a fraternidade da Porciúncula, de Rivotorto, de São Damião e de diversos cantos do mundo.
Nesse horizonte, escreveu na Regra não bulada: “Todos, indistintamente, se chamem irmãos menores. E um lave os pés do outro (Jo 13,15).” (cf. RNB 6,3-4). Com isso, chamava a atenção dos frades (e de todos os seus filhos e filhas, da atualidade) para a construção de relações fraternas verdadeiras. Independentemente de títulos ou cargos, todos deviam reconhecer-se servos uns dos outros, comprometidos em observar o mandamento novo: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (cf. Jo 13,34; 15,12). Nada mais além disso: o sentido único da pessoa do semelhante, com a própria históriA.
Em sua bagagem, o Poverello carregava valores significativos, adquiridos em casa, com bons exemplos da mãe, dona Joana; assimilados da Cavalaria e da literatura da época. A propósito de suas virtudes, São Boaventura escreveu: “Mansidão, gentileza, paciência, afabilidade mais que humana, liberalidade que ultrapassa seus recursos eram sinais de sua natureza privilegiada que anunciavam já uma efusão mais abundante ainda da graça divina nele” (cf. LM 1,1). Dessa forma, sua pessoa falava uma só linguagem: a força da simplicidadE.
Certamente, ele herdou do ambiente da Cavalaria o elemento mais importante, a corte, dando-lhe uma nova roupagem. Para Vitório Mazzuco: “A cortesia de Francisco era prática, imediata, desinteressada”. Acrescenta que esta virtude na vida do Santo: “não é uma etiqueta, uma norma de civilidade social, mas é a expressão insubornável e inevitável de seu sentimento interior: é o modo como o outro deve ser amado, de um modo verdadeiro. É um relacionamento de respeito, retidão e sinceridade”. Ao mesmo tempo, tornara-se fascinante pela amabilidade desconcertante, por andar fora de moda, usando andrajos.
Este Pobrezinho de Assis nos encanta pelo jeito materno de amar e cuidar. Quando Frei Leão está angustiado e desolado, ele diz: “Assim te falo, meu filho, como mãe” (cf. CtL). Quando os irmãos (e as irmãs) devem ter atitudes maternais entre si: “E cada qual ame e alimente a seu irmão como a mãe ama e nutre seu filho; e o Senhor lhe dará a sua graça” (cf. RNB 9,14; RB 6,7). Nisso, ele compreendeu a matriz do amor entranhado.
Sensível à fragilidade humana, não queria perder ou descartar o “filho pródigo”. Na Carta a um Ministro, apresenta sua predileção por aquele irmão que tropeçara. Colocara-se em seu lugar. Sua intenção buscou trazê-lo de volta ao Senhor:
“que não haja nenhum irmão no mundo, que tenha pecado tanto quanto puder pecar, que, depois que tiver visto teus olhos, nunca se retire sem a tua misericórdia, se buscar misericórdia. E se não buscar misericórdia, que tu lhe perguntes se quer misericórdia. E se depois pecasse mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim, para isto, para que o atraias ao Senhor; e que sempre tenhas misericórdia de tais [pessoas]” (cf. CtM 9-11).
Essa empatia compreende a intensidade da compaixão incontornável.
As Admoestações 24 e 25 tratam sobre o tema do amor mútuo, cuja essência é a generosidade para com o próximo. No primeiro texto, ouvimos o seguinte: “Bem-aventurado o servo que tanto ama seu irmão quando (este) está doente e não pode satisfazê-lo, como quando está com saúde e pode satisfazê-lo.” (cf. Adm. 24). Refletindo esta realidade existencial, Lázaro Iriarte afirma que o irmão enfermo, no corpo e no espírito, é o único privilegiado aos cuidados dos demais. Ele reflete o rosto humano de Jesus (cf. Mt 25,35-40). Por isso, a caridade para com ele deve ser a primeira tarefa da fraternidade.
Na sequência, enfatiza a questão das relações interpessoais: “Bem-aventurado o servo que tanto ama e respeita seu irmão quando (este) estiver longe dele como quando estiver com ele; e não disser por trás dele aquilo que, com caridade, não pode dizer diante dele.” (cf. Adm. 25). Sem dúvida, a desonra, a injúria, o julgamento, o menosprezo, a calúnia, levam à ruína qualquer comunidade. Com essas palavras, o Seráfico pai busca definir um “código de comportamento fraterno”. Nesta perspectiva, K. Esser ressalta: “O amor fraterno, sem o qual não pode existir o Reino de Deus, precisa ser autêntico e vivido nas pequenas coisas de cada dia”. Desse modo, o ideal sonhado rejuvenesce e cresce, hoje, em cada tempo e lugar.
Evocando o Irmão de Assis, o Papa Francisco trouxe à luz, em 3 de outubro de 2020, a encíclica Fratelli Tutti (FT), convidando-nos “a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço” (cf. FT 1). Chamando-o de “Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria” (cf. FT 2), o Papa reforça: “São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne.” (cf. FT 2). E acrescenta: “Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que «Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus» (1Jo 4, 16). Assim, foi pai fecundo que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna” (cf. FT 4). Esta utopia ainda pulsa nas veias da história da humanidade.
Os franciscanos e as franciscanas somos portadores dessa bela herança. Ressignifiquemos nossas relações, nosso diálogo, nossos gestos, nossa profissão de fé. Revigoremos nosso carinho, nosso cuidado; nossos encontros, nossas buscas, nossos horizontes. Juntemos nossas mãos para formarmos a ciranda do verdadeiro amor fraterno, sem fronteiras. Vamos começar tudo de novo, agora e sempre! Chegou a nossa vez!