Fragmentos de uma Meditação Mariana
1) Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues (....) - Drummond
Continuar... A modo da água de um rio que ao se deparar com um estorvo não briga com ele, mas o contorna e prossegue.
Por que brigamos tanto com os obstáculos com que nos deparamos? Nada é mais cansativo que as colisões do nosso ego tão sólido com o ego, também sólido, do outro. Como liquidar isso?
2)- Eis a serva de Deus, faça-se nela
Sua santa vontade, diz a Virgem.
Salvo era o mundo (Fagundes Varella)
Uma coisa é “estar salvo de”, outra coisa é “ser salvo para”.
Por que insistimos tanto no primeiro aspecto e descuramos o segundo? O segundo é primordial; o primeiro é secundário.
“Faça-se nela”!? O correto não é “faça-se em mim”? Por que “nela”, como se Maria se referisse a uma terceira pessoa? Talvez porque o correto nem sempre é reto (orthós).
Não temos aqui um eco do que diz Ezequiel 2,1: “Filho do homem, põe-te de pé”?
Na antiga iconografia oriental, quando aparece Gabriel, Maria está de pé, levemente recuada, retraída.
3) Segundo o poeta Elien, a virgem Maria deixou-se engravidar pelo ouvido: “Alegra-te, Virgem Mãe de Cristo, que pela orelha concebeste!”.
4) Se eu pudesse reescrever poeticamente o engravidamento da Virgem, seria assim: desprezando os detalhes da anatomia, que me levam ao drama edipiano dos filhos que desejam salvar a mãe da penetração dolorosa/prazerosa do pai, e para isso o castram, a fim de que ela permaneça virgem, eu me deteria no delicado milagre da palavra que entra no ouvido, deixando intactas todas as passagens, e vai até onde mora o desejo. E ali, seduzindo-o, a palavra torna-se sêmen, e o corpo começa a inchar (Rubem Alves).
Começa a inchar, isto é, a encher-se do outro porque se esvaziou de si ou do pequenino si-mesmo (selbst).
5) Diz Gabriel à mocinha de Nazaré: Alegra-te, cheia de graça! (Lc 1, 28). Não é interessante que o texto grego use a mesma palavra para dizer alegria (charan) e graça (charis)?
Enfim, como perguntou Holderlin:
Por que temos tido tão pouca alegria?
Desconfio que o poeta não se referia àquela alegria, eufórica e efêmera, dos alegrinhos (insuportáveis), mas àquela alegria levemente triste dos compassivos.