Francisco, o questionante fundamental
Em Assis, por volta de 1181, despontou uma presença, Giovanni di Pietro di Bernardone, o Frascesco d'Assisi. Deu-se início à existência que, em intensos, e não apequenados, quarenta e cinco anos, encontrou o seu cerramento. Embora em 1226 tenha se findado o percurso existencial de Francisco, o início de sua presença se ateve antecipativamente, desdobrando-se nos acontecimentos “co-movedores” dos que refazem os passos do assissiense nos seus próprios.
Um jovem da Baixa Idade Média e nascido em uma cidadezinha bem murada, situada em uma fria colina da Úmbria, ou pertencia à velha nobreza já decadente ou integrava uma nova classe ascendente com aspiração aos privilégios dos nobres. Ora, não ocorreu de modo diferente com Francisco, cujo pai é descrito pelos seus hagiógrafos como um ambicioso comerciante de tecidos franceses e homem pretensioso que via em seu filho um meio de alcançar títulos e fortuna. Dessa forma, podemos ver Francisco se preparando para ser um cavaleiro (bellator) e conquistar o que todo jovem burguês daquela época desejava: honra e fortuna. Entre os de sua idade, Francisco cumpria a sina deu ma juventude que ora buscava o prazer do vinho e dos banquetes, ora batia no peito com o miserere (salmo 50) na Igreja Catedral de Assis.
Qual foi o acontecimento que apropriou Francisco de si mesmo, que o fez assumir o seu poder-ser próprio?
Muitos foram os hagiógrafos do santo de Assis, também inúmeros são os biógrafos a levantar considerações historiológicas do jovem revolucionário nos movimentos pauperísticos da Baixa Idade Média. Aqui, no entanto, objetivamos uma breve e obsoleta meditação histórica sem pretensão alguma, a não ser abrir questões e novos âmbitos da mesma questão. Tal meditação assume como ponto de partida a angústia daquele jovem assissiense.
“De onde surgiu essa angústia?”
Em um primeiro momento, temos de esclarecer que angústia emedo são tonalidades afetivas distintas. No caso, especificamente, da angústia, podemos compreendê-la como uma suspensão existencial que escancara o nada sobreo qual estamos todos suspensos e torna insignificante tudo o que era tido como de máxima importância. A angústia anula, ou desvela a nulidade, de todas aquelas coisas cuja significação era já sempre estabelecida, sedimentada.
“E não foi isso que aconteceu com Francisco?” O que antes era tudo, tornou-se nada!
Um acontecimento pode nos dar um esboço do que se avizinhava de Francisco. Estamos nos referindo ao “beijo do leproso”: uma descrição questionadora, pois inegavelmente humana. Francisco e o leproso(figura bem representativa), certa vez, entreolharam-se, e aquele sentiu emergir, da mundividência na qual havia sido “in-formado", uma amargura que em nada ou bem pouco se diferenciava do que acontecia com os outros homens e mulheres, pois compartilhavam basicamente as mesmas significações sustentadoras de mundo. Contudo, Não sabemos, ao certo, quando e nem realmente como aconteceu um encontro autêntico entre Francisco e um estigmatizado, também não sabemos se Cristo ou um acometido por lepra e, deveras, há sempre um possível no transcendere. Neste encontro, mais uma vez, entreolharam-se Francisco, cujo mundo já se nadificava, e o leproso, cujo mistério continuamente nos desperta a consciência. Francisco visou o “possível” e, intuindo, transpassou o real ao beijar o “nada” que estava por trás da lepra.
A coragem de ser levou Francisco, não a uma nova construção de mundo, mas a um contínuo destruir, ou seja, retornar questionante. Eis a fé que vivenciou o jovem assissiense a partir de si mesmo em profusão de autenticidade. A pobreza tornou-se dama, a criação brotou como fraternidade universal e, tão logo, começaram a aparecer seus fratres.
Caso compreendamos esse percurso de Francisco como a inspiração de todo o movimento franciscano, cremos que ainda não teremos alcançado a essência da experiência originária que moveu o poverello d'Assisi. Então, radicalizemos, vamos às raízes! Por isso, temos de destruir – verbo que, aqui, não pode ser interpretado como um ato de violência, mas como um contínuo esforço de “anteriorização fundante”! Auscultemos o apelo daquele que se manifesta “re-velando-se"! Nas palavras do EvangelhoSegundo João, “λέγει αὐτοῖς, ἔρχεσθε καὶ ὄψεσθε. ἦλθαν οὗν καὶ εἶδαν ποῦμένει – disse a eles, vinde e vede! Foram, pois, e presenciaram omodo-de-ser (εἶδαν) do que permanece (μένει)” (Jo 1, 39). Nesse “onde” (ποῦ), os que buscavam, foram e viram! Eis a experiência originária que também fez Francisco, vivenciando-a com a autenticidade que quero movimento franciscano tornar porta de entrada para tantas outras vivências autênticas de fé (visão) e abandono (ir e ver).
Caríssimos irmãos, neste ano, começamos as celebrações do Centenário Franciscano. Como Família Franciscana, somos convidados a retomar a experiência de Francisco em nossa época, nos espaços e atividades que desempenhamos, porém, atualizando os movimentos do Espírito, fazendo presente o carisma (a força renovadora do Espírito que moveu Francisco) na Igreja e no mundo contemporâneo. Que esse tempo seja para todos nós que seguimos a Jesus Cristo segundo as marcas do caminho que nos deixou Francisco, uma abertura para repensarmos a nossa vocação, repropormos novas questões e novos âmbitos de questões antigas e, antes de mais nada, renovar o nosso amor a Fraternidade Universal.