Homilia Dominical - XXI Domingo Comum

Homilia Dominical - XXI Domingo Comum

“Muitos dos seus discípulos, ouvindo-o, disseram: ‘Isto é muito duro! Quem o pode admitir?”

- O Evangelho de hoje começa com uma forte reação dos discípulos: “Isto é muito duro! Isto é inadmissível!” Lembremo-nos das palavras de Jesus: “... se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós mesmos ...”. Diante de tais palavras é que os discípulos começaram a murmurar, se escandalizar, reagir fortemente. Os discípulos ficaram chocados. Forte choque! Os discípulos julgaram a situação inegociável, não dava para negociar com aquelas palavras de Jesus, não dava para suportá-las, acatá-las. “Comer a carne e beber o sangue do Filho do Homem?”

- “Comer e beber o Senhor” é admitir, tomar posse, apropriar-se, em nossa vida, da vida dele, do mesmo destino que o seu. Na santa Eucaristia, quando comungamos do corpo do Senhor estamos querendo, entre tantas belas coisas, pautar nossa vida ao seu estilo de vida, ter a própria vida dele em nós. O corpo de Jesus é a pessoa dele!

- Vejamos um pouco a vida de Jesus, vida que ele quer que participemos quando bebermos seu sangue e comermos sua carne. A pessoa de Jesus é uma pessoa senhora de si (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”). Ao comer a carne do Senhor, fazemos memória do fato que Jesus experimentou, aceitou, a bondade dos seus pais e amigos e também conviveu com a traição de muitos; viu o Reino do seu Pai e sabia também do reino das Trevas (“Sede simples como as pombas e espertos como serpentes”); trabalhou com as próprias mãos e sentiu o cansaço da vida e também o prazer de ganhar a vida com o suor do rosto e de visitar a casa de Maria, Marta e Lázaro; contemplou os pássaros e as plantas e se sentiu parte da criação ao caminhar sobre as águas; afrontou com energia e ira os vendilhões do Templo e afagou as crianças, os pobres e os renegados; confiou até o fim na presença do Pai (“Em tuas mãos entrego o meu espírito”). A carne, o corpo, a pessoa de Jesus possuía a Palavra, tinha em si o Espírito Santo. Com esta carne e corpo (a sua pessoa) “grávidos” da Palavra ressuscitou Lázaro e o filho da viúva em Naim. Em sua carne ele amou seus discípulos e a todos até o fim, fazendo-se “pão” que se entrega nas mãos de outros para alimentá-los e fazê-los viver. Com sua carne e corpo, a pessoa de Jesus era um homem desperto, sentia-se em contato com sua fonte, sua raiz, seu princípio, o Pai. Em sua carne e corpo amava, e amando afrontou a morte como rendição ao Amor, ao seu Pai. Com esta carne e corpo (sua pessoa) ressuscitou dos mortos e vive para sempre: é o Senhor.

Irmãos e irmãs, Jesus dando-nos seu corpo como alimento para nós deseja somente que nos apropriemos desta pessoa que ele é (e que acima vimos alguns traços): “Eu sou a luz da vida”; “Eu sou a vida, o pão, que desceu do céu”; “... se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós mesmos ...”. Aqui temos a chance de tomar posse, de se apropriar daquela vida que ele levou entre nós, vida eterna e do Eterno que possui para sempre junto ao Pai todo poderoso.

- Sei lá o que é que tem no ser humano! Por que será que diante de palavras tão cheias de vida, os discípulos reagiram dizendo: “Isto é muito duro, inadmissível!”.

- Podemos bem imaginar que temos um “instinto” que insiste em querer ser autônomo, no sentido de possuir uma força centrada em si mesmo, não precisando depender do Pai, nem dos irmãos. Um “instinto” que não aceita um Jesus que se faça “pão” nas mãos dos outros e nem nas nossas. Queremos um Jesus à nossa imagem e semelhança, isto é, um Jesus que aprove nossa revanche, nosso ressentimento, nossa justiça que cria perdedores e vencedores. Aprovamos um Jesus que nos dê “pão” e alimente nossa preguiça e dependência infantil. E parece que cada um quer um Jesus que aprove a própria sede de ter só para si e que os outros que se virem. Queremos um Jesus que seja rei ao modelo dos reis mundanos, e que nos fará reinar, “apagar”, os outros. Um Jesus que elimine da terra o sonho de partilha, solidariedade, de comunhão e verdadeira adoração ao Pai eterno.

- No entanto, “Se não comerdes a carne do Filho do Homem...”.  Faz-se necessário, para ir vivendo de vida eterna, tomar decisão por Ele, alimentar-se d´Ele, absorvê-lO. Isso significa fazer de Cristo a pessoa que você mais passa a imitar, a amar, a querer. E, assim, Jesus Cristo se tornará minha carne e meu sangue, meu viver.

-Palavras duras? Qual resistência temos que impedem a adesão a Cristo e nos fazem considerar suas palavras como intragáveis e indigestas?  O motivo é que Jesus diz ser “o pão da vida que desce do céu”, e que tal “pão” nos livra da morte, nos dá a vida do eterno. E ao dizer isso, Ele está falando de sua carne, de seu sangue, do gesto supremo da cruz, do deixar-se pegar nas mãos e se desfazer para alimentar a todos que quiserem: “... se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós mesmos ...”.

- Tudo indica que não aceitamos “a carne e o sangue de Jesus”, a vida doada, vida feito pão e alimento, porque não aceitamos que aquele no qual depositávamos nossas esperanças venha com uma conversa diferente, pois queremos as coisas e as pessoas do nosso próprio jeito, não aceitamos a “conversa” de Jesus. Lembremo-nos de Pedro. Pedro esperava tomar posse do reino de Israel, Jesus como Messias daria tal reino à ele e aos seus companheiros. Haveria o gosto da vingança para com os romanos e outros inimigos de Israel. Pedro, como muitos, esperava se alimentar, esperava viver de um “Deus” que tornasse real seus sonhos, sonhos, acima de tudo, de vingança, de triunfo sobre os adversários. Sonho de uma justiça na qual tenha, sim, vitoriosos e perdedores.

- Jesus vai além, fala da cruz, fala de se ofertar pelos pecadores e pecados, fala de salvar a todos e não só alguns.  O veneno do mal presente no mundo injusto e violento será combatido com o antídoto, com o remédio do inocente, com a força triunfante do perdão, com a arma certeira do amor. A cruz – corpo e sangue doados - impõe um limite à nossa violência, nos desconcerta, se choca contra nossa malícia e contra o nosso duro coração. Então....vamos comer e beber a “conversa” de Pedro ou vamos comer a carne, a pessoa, o corpo, o sangue, a “Palavra” de Jesus?

- É... o Evangelho deste domingo é mesmo “duro de roer”, difícil de aceitar, pois entra em choque com o nosso duro coração. A “Serpente” conhecia um desejo secreto do coração, aquele desejo de ocupar o trono de Deus. Por isso disse a Eva e Adão: “Vós sereis como deuses”. E sendo um “deus” o homem não precisa do Cristo, não precisa de ninguém, não precisa daquele dom prometido: “... e o pão que darei é a minha carne para a vida do mundo”. Pasme! Os próprios discípulos de Jesus se negam, não aceitam o dom de Deus, o filho de Deus, não acreditam no amor, rejeitam-no. Não se rendem de jeito nenhum! Não aceitando o presente, o dom de Deus, todos nós nos autorizamos a viver sem precisar dizer “muito obrigado” a quem quer que seja. É o início do terror, do mundo cão, da vida difícil: retrato do nosso mundo!

- Assumir o escândalo da cruz – ter a plena confiança de que estamos nas mãos de Deus -, isto é, comer e beber a pessoa de Jesus com suas palavras, opções e atitudes de vida nos faz capazes de viver como Ele, o Filho do Pai nosso que tem tantos irmãos. Não é questão de sentimentalismo, é jogo de vida ou morte, pois participar do sangue e da carne de Cristo, circular em suas veias até atingir o seu manso e humilde coração é vida eterna, é vida de Deus, é amor que vence a morte. No cotidiano da vida significa viver a solidariedade, o serviço, o dom, a partilha.

- “Que será, quando virdes subir o Filho do Homem para onde ele estava antes? Tremenda revelação! Jesus revela que nos é difícil compreender a glória dele junto do Pai, não compreendemos que Ele elevado na cruz está manifestando sua glória junto do pai: Deus é amor, doa sua vida (“Ninguém tem maior amor do que aquele que doa sua vida pelo amigo”). O esplendor, a glória, o triunfo é um eterno serviço, é cruz. Não é por acaso que muitos não gostam de “crucifixos”: consideram Jesus na cruz como um fracasso. Não conseguem entender que a vitória e a glória estão no servir: “Ninguém tem maior amor (mais Deus) do que aquele que doa sua vida pelo amigo”.

- “O espírito é que vivifica, a carne de nada serve. As palavras que vos tenho dito são espírito e vida”. As palavras de Jesus orientam, trazem à luz muitas verdades escondidas, convidam as nossas almas a experimentarem o gozo da liberdade, do perdão, da adoração ao Pai e também nos capacita a entender as palavras e opções do Mestre. Sem estas palavras do espírito viveremos na carne, isto é, dominados e entregues ao poder da solidão, do egoísmo que angustia, da escravidão dos vícios, das taras herdadas e aprendidas. A carne sem espírito é uma vida sem respiro e sem esperança, pois se torna uma mera vida do passar de dias e anos.  

- “Mas há alguns entre vós que não crêem...”. Jesus atesta, deixa às claras, que alguns não gostam daquilo que Ele gosta; alguns não apostam a vida naquilo que Ele aposta; alguns não acreditam, não confiam, naquilo que Ele acredita e confia. Cada um de nós pode ter a própria opinião que segue certamente o próprio interesse e deleite. Isso! Deleitamo-nos e temos interesses em algumas coisas. Nós cremos naquilo que é nosso deleite e interesse. Pode ser até um delírio (“Só eu sou o melhor”), uma mentira (“A pessoa vale o que tem”), uma escravidão (“Não preciso de ajuda para largar a..., o....”) ou uma fantasia (“Aquele ali vai resolver todos os meus problemas”), mas se tais realidades são abraçadas por nós, não tem jeito, iremos repudiar aquilo que o Cristo acredita, aposta e confia.

As santas palavras do Senhor nos impactam, nos provocam, nos querem conduzir a conhecer e a aceitar uma coisa bem precisa. Trata-se de recepcionar em nós aquele dom maior, o dom de um Deus que quer nossa amizade, que quer ser nosso Senhor, que deseja ser nosso alimento desde o nosso íntimo. Tudo indica que o melhor que possa acontecer a um homem ou a uma mulher neste mundo seja tal descoberta, a descoberta de ser amado, querido e desejado por Deus. E não só! Mas, realmente se deixar amar e se permitir ser alimentado pelo Amor (“Deus é amor”, nos diz são João): “Abre bem a tua boca que eu te sacio” (Sl 81)

Autor:
Frei João Santiago, OFMCap
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