O Cântico de Frei Sol: o louvor da fraternidade universal

O Cântico de Frei Sol: o louvor da fraternidade universal

Introdução

Nos últimos anos a Família Francisclareana tem celebrado diversos centenários ligados à figura do Seráfico pai São Francisco de Assis. Estes momentos constituem uma bela oportunidade para um olhar agradecido ao passado, às raízes da espiritualidade de franciscana além de oferecer luzes para viver este carisma tão atual, atraente, profético e desafiador.

Faça download do arquivo com este texto clicando aqui

O ano de 2025 é reservado aos 800 anos do Cântico das Criaturas, que é uma das orações compostas por Francisco de Assis. Embora não sejam numerosas, a maior parte de suas orações possuem um caráter de louvor e são, sem exceção, uma amplificação da Palavra de Deus, refletem a sua experiência interior de meditação e de contemplação da Palavra de Deus. Nas orações do santo, é possível perceber que o conteúdo é progressivamente marcado pelo louvor, ou seja, passam de orações de petição para orações de louvor (Cf. PAOLAZZI, 2004, p. 153). Nesse mesmo sentido, exortava os frades ao louvor a Deus e a pregarem os louvores a Deus, a penitência e a paz, como é bem descrito na Regra não Bulada:

Em toda parte nós todos em todo lugar, em toda hora e em todo tempo, todos os dias e continuamente creiamos veraz e humildemente e tenhamos no coração e amemos, honremos, adoremos, sirvamos, louvemos e bendigamos, glorifiquemos, e sobre-exaltemos, magnifiquemos e demos graças ao altíssimo e sumo Deus eterno, trindade e unidade, Pai e Filho e Espírito Santo, criador de tudo e salvador de todos que nele creem e esperam e o amam, que sem início e sem fim imutável, invisível, inenarrável, inefável, incompreensível, inescrutável (Rm 11,33), bendito, louvável, glorioso, sobre-exaltado (Dn 3,52), sublime, excelso, suave, amável, deleitável e todo mais desejável do que todas as coisas pelos séculos. Amém (RnB XXIII, 11).

Especificamente o Cântico de Frei Sol possui como base os dois livros escritos pela mão de Deus: a Palavra viva e fecunda escutada e celebrada principalmente na liturgia da Igreja e o livro da criação, que constitui um espelho transparente do amor e da verdade de Deus.

O presente estudo tem por objetivo apresentar na sua primeira parte uma aproximação da estrutura do Cântico destacando as circunstâncias da sua composição, os motivos e a quem o louvor se dirige. Já a segunda parte consta de uma leitura interpretativa, teológica e espiritual, ainda que breve, de cada uma das partes da oração. Baseia-se nas fontes e em alguns estudiosos que refletem o tema, permitindo e desafiando o leitor para uma posterior atualização, tendo em conta a atual situação do planeta no âmbito da ecologia e dos apelos do Papa Francisco, principalmente nas encíclicas Laudato Si e Fratelli Tutti.

Circunstâncias da composição do Cântico de Frei Sol

O Cântico de Frei Sol, nome dado por Francisco, por considerar o sol a mais bela das criaturas, a mais semelhante a Deus (Cf. EP 119), ou Cântico das criaturas, também chamado Cântico da fraternidade universal ou de Cântico do irmão Sol é amplamente presente na tradição manuscrita dos Escritos de São Francisco  e constitui um dos textos mais amados e poéticos, obra prima da literatura italiana. No entanto, mais que um texto poético é uma oração cantada (Cf. VAIANI, 2015, p. 371), composto possivelmente em momentos diversos na etapa final da vida de Francisco. O texto é fruto de um longo itinerário espiritual. Desde o início da sua conversão à vida evangélica haviam se passado quase vinte anos. Durante esse tempo, empenhou todas as suas forças e energias, dia após dia, em seguir as pegadas de Cristo. A expressão maior dessa configuração do discípulo ao Mestre se verifica no fato dos Estigmas no Monte Alverne (Cf. LECLERC, 1999, p. 09).

O texto foi escrito provavelmente entre o inverno e a primavera de 1225 (Europa), quando Frei Francisco se encontrava em São Damião, lugar em que permaneceu ao menos por 50 dias. A estrofe sobre o perdão foi escrita possivelmente alguns meses depois para sanar um conflito entre o bispo e o prefeito de Assis. E a estrofe sobre a irmã morte, nos últimos dias da sua vida, em setembro de 1226 (Cf. CA 7; VAIANI, 2015, p. 372).

As condições em que o santo se encontrava quando da composição do Cântico são descritas amplamente pela hagiografia. Francisco passava por sofrimentos físicos – a cegueira dos olhos, os problemas de estômago, fígado, baço, a própria dor dos estigmas – tudo isso somado às tribulações humano-espirituais em função dos caminhos da Ordem, que a esse momento fugia do seu controle como fundador e desse modo no Alverne compreende que a Ordem pertence a Cristo e não a ele (Cf. CA 5; 77). Francisco se encontrava em um quartinho em São Damião, gravemente doente, frágil, não suportava a luz por causa da doença dos olhos, que o impedia de dormir. Além do mais, era perturbado por ratos.

Por isso, uma noite, pensando o bem-aventurado Francisco que estava tendo tantas tribulações, ficou com pena de si mesmo e disse lá dentro de si: “Senhor, olha para me socorrer, em minhas enfermidades, para que eu possa tolerar com paciência”. E, de repente, foi-lhe dito em espírito: “Dize-me, irmão: se alguém, por essas tuas enfermidades e tribulações te desse um tesouro tão grande e precioso que, se toda a terra fosse puro ouro, todas as pedras fossem pedras preciosas, e toda a água fosse bálsamo, todavia tu reputarias e terias por nada tudo isso, por serem matérias: terra, pedras e água, em comparação com o grande e precioso tesouro que te será dado. Não te alegrarias muito? O bem-aventurado Francisco respondeu: “Senhor, esse tesouro seria grande e impossível de investigar até o fim, muito precioso e por demais amável e desejável”. E lhe disse: “Então, irmão, alegra-te e te rejubila bastante em tuas enfermidades e tribulações, porque de resto podes estar tão seguro como se já estivesses no meu reino” (...). Ao acordar de manhã, disse aos seus companheiros (...): “Por isso eu tenho que me alegrar agora com minhas doenças e tribulações e me confortar no Senhor, e sempre dar graças a Deus Pai e a seu único Filho nosso Senhor Jesus Cristo, e ao Espírito Santo, por tamanha graça e bênção que me deram, porque, vivendo ainda na carne, por sua misericórdia dignou-se dar-me a certeza do reino, a mim, seu servozinho indigno (...). E sentando-se começou a meditar e depois a dizer: “Altíssimo, onipotente, bom Senhor”. E compôs um cântico nessas palavras e ensinou seus companheiros a cantá-lo (CA 83).

Não obstante a fragilidade física, o Cântico reflete um homem pacificado, em harmonia consigo, com as criaturas e com o Criador. E ainda, convém evidenciar, com o fatídico sofrimento físico que aos nossos olhos se apresenta tão difícil e o aproximar-se de uma realidade dramática ao ser humano – a morte – acolhida como irmã. Na situação de sofrimento, Francisco recebe de Deus a revelação da vida eterna, fruto dessa experiência espiritual que o conforta em seu sofrimento; brota então o sentimento de alegria, e sua interioridade se expande em louvor. Na biografia dos santos, episódios semelhantes a esse são chamados de certificacio, que consiste na asseguração da salvação; e, no caso de Francisco, foi recebido como dom do Altíssimo, uma confirmação explícita da parte de Deus, dos sinais da paixão impressos no seu corpo (Cf. PAOLAZZI, 2009, p. 119). De manhã, Francisco conta aos companheiros a grande alegria pela promessa recebida, e a sua gratidão se expressa em forma de louvor, que para o santo é o melhor modo de restituir Àquele que é a Fonte do bem, o sumo Bem, Todo o bem, os dons recebidos (Cf. RnB XVII,17; XXIII,9). “Por isso eu quero, para o seu louvor e para nossa consolação e edificação do próximo, fazer um novo Louvor ao Senhor por suas criaturas, das quais nos servimos todos os dias e sem as quais não podemos viver” (CA 83,22).  

O texto foi escrito em italiano “vulgar”, com a presença de latinismos e do dialeto umbro como é possível perceber na comparação dos textos: “Altissimu, onnipotente, bom Sinhore, tue so’le laude la gloria e l’honore et onne benedizione. Ad Te solo, Altissimo, se konfane, e nullu homo ène dignu Te mentovare” (PAOLAZZI, 2009, p. 121). Na língua italiana moderna, o mesmo verso é escrito: “Altissimo, onnipotente, buon Signore tue sono le lodi, la gloria e l'onore ed ogni benedizione. A te solo, Altissimo, si confanno, e nessun uomo è degno di te”.

O Cântico foi composto com característica de uma ação litúrgica, na qual toda a criação é unida ao ser humano para o louvor ao Deus Criador. Há como pano de fundo o modelo bíblico dos salmos e do cântico dos três jovens do livro de Daniel, como bem nota o biógrafo Tomás de Celano (Cf. Dan 3, 52-90; 1Cel 80). Com efeito, foi pensado por Francisco como uma expressão de louvor em forma de ação litúrgica, ou seja, um ato solene e universal no qual toda a criação e a humanidade são convidadas com seu ser, vida e palavras. Nesse sentido, a oração é semelhante aos Louvores para Todas as Horas e ao menos dois salmos do Ofício da Paixão em que os homens e as criaturas são convidados ao louvor a Deus. “Nessa ocasião, compôs os Louvores das Criaturas, convidando-as a louvar sempre o Criador” (2Cel 213,11). O louvor é expresso com sentimentos de paternidade e filiação, no qual contempla o Criador nas criaturas, que por sua vez são espelho da bondade, da verdade e da beleza Suprema que se transforma em louvor (Cf. PAOLAZZI, 2009, p. 119) como é descrito por Tomás de Celano:

Usava o mundo como um campo de batalha com os príncipes das trevas, mas também, para Deus, como um espelho claríssimo da bondade. Em qualquer artifício louvava o Artífice, e tudo que encontrava nos fatos, repassava ao Autor. Exultava em todas as obras das mãos do Senhor (Sl 91,5; 8,7) e, através dos espetáculos que lhe davam prazer, sabia encontrar aquele que é razão e causa de toda vida. Nas coisas belas reconhecia aquele que é o mais belo, e ouvia todas as coisas boas clamarem: “Quem nos fez é ótimo”. Quem poderia contar tudo? Pois toda aquela Fonte de bondade, que vai ser tudo em todos, já iluminava tudo em tudo para este santo (2Cel 165, 3-5.10).

Do ponto de vista estrutural, o poema é divido em 14 versículos e composto por nove estrofes. A 1ª é o oferecimento, indica o Altíssimo como o destinatário do louvor, a 2ª o Senhor irmão Sol, a 3ª a Irmã Lua e as Estrelas, a 4ª o irmão Vento, a 5ª a Irmã Água, a 6ª o Irmão Fogo e a7ª nossa Irmã, a Mãe Terra. As duas últimas foram acrescentadas posteriormente: a 8ª sobre o Perdão e a 9ª sobre a Irmã Morte (Cf. LECLERC, 1999, p. 34-39). As nove estrofes do Cântico, citado integralmente abaixo, serão estudadas em quatro partes (Cf. VAIANI, 2015, p. 374).

1Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória, a honra e toda bênção (cfr. Ap 4,9.11). 2Só a ti, Altíssimo, são devidos; E homem algum é digno de te mencionar. 3Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas (cfr. Tb 8,7), especialmente o senhor Frei Sol, que é dia e nos iluminas por ele. 4E ele é belo e radiante com grande esplendor; de ti, Altíssimo, carrega a significação. 5Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Lua e as Estrelas (Sl 148,3), no céu as formaste claritas e preciosas e belas. 6Louvado sejas, meu Senhor, pelo Frei Vento, pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo o tempo (Dn 3,64-65), pelo qual às tuas criaturas dás sustento. 7Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Água (Sl 148, 4-5), que é muito útil e humilde e preciosa e casta. 8Louvado sejas, meu Senhor, pelo Frei Fogo (Dn 3, 63) pelo qual iluminas a noite (Sl 77,14), e ele é belo e alegre e vigoroso e forte. 9Louvado sejas, meu Senhor, por nossa Irmã a mãe Terra (Dn 3,74), que nos sustenta e governa, e produz frutos diversos e coloridas flores e ervas (Sl 103,13-14). 10Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor (Mt 6,12), e suportam enfermidades e tribulações. 11Bem-aventurados os que as suportam em paz (Mt 5,10), que por ti, Altíssimo, serão coroados. 12Louvado sejas, meu Senhor, por nossa Irmã a Morte corporal, da qual nenhum homem vivo pode escapar. 13Ai dos que morrerem em pecados mortais! Felizes os que ela achar conformes à vossa santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal! (Ap 2,11; 20,6). 14Louvai e bendizei a meu Senhor (Dn 3,85), e dai-lhe graças, e servi-o com grande humildade.

Motivo e destinatário do louvor (1-2)

Os dois primeiros versos configuram um convite inicial, apresentando o motivo central, o oferecimento ou o destinatário do louvor – Deus – denominado com os adjetivos “Altíssimo, Onipotente e Bom Senhor”, a quem somente é devida a glória, a honra e o louvor. O objetivo de Francisco, no Cântico, é unir-se a todas as criaturas no louvor a Deus. Nele, o santo ama e nos ensina a amá-Lo bem como a tudo o que saiu de suas mãos do Pai e Criador. É do coração amoroso que vem o reconhecimento da presença do Criador em suas criaturas e brota o louvor por meio do qual se restitui a Deus todo o bem.

As expressões com as quais Francisco inicia esse Hino, dirigidas a Deus Pai, destinatário do louvor, são “Altíssimo, onipotente e bom Senhor”, encontradas de modo análogo em outros escritos, a saber, na Oração diante do Crucifixo de São Damião: “Altíssimo e glorioso Deus...”; na Carta a toda a Ordem: “Onipotente, eterno e misericordioso Deus...”; na Regra não Bulada: “Onipotente, santíssimo, altíssimo e sumo Deus, Pai santo e justo, Senhor rei do céu e da terra”; na Paráfrase do Pai Nosso: “Ó Santíssimo Pai Nosso...”; nos louvores ao Deus Altíssimo: “Vós sois santo... Vós sois Altíssimo... sois o rei Onipotente...” e em outros textos.

Os adjetivos ou superlativos com os quais abre o Cântico revelam um Francisco que contempla Deus Pai no seu ser e no seu agir, ao mesmo tempo imanente e transcendente. Além disso, anuncia o louvor a Deus Onipotente, que, com a sua santa vontade e pelo seu Filho Unigênito com o Espírito Santo, criou todas as coisas espirituais e corporais (Cf. RnB XXIII,1); louvor ao Senhor bom, sumo Bem, eterno bem do qual provém todo o bem, sem o qual nenhum bem existe (Cf. OP 2). O compositor mostra que a criação do cosmos, do mundo, das criaturas e do homem é uma ação e obra da Trindade, e a cada uma das três pessoas divinas compete uma específica função: o Pai, pela sua vontade, é o ponto de início da criação, o Filho é o meio pelo qual o mundo é criado, a imagem visível do Deus invisível, e o Espírito Santo é o princípio vital com o qual tudo toma forma. Francisco está diante da Onipotência e da grandeza da vida divina e contempla com estupor a expansão da divindade na força e na beleza da obra da criação e da redenção. Os adjetivos Altíssimo, onipotente e bom Senhor são os polos fundamentais da meditação teológica de Francisco: Deus altíssimo no seu mistério, onipotente na criação, bom e misericordioso na obra da salvação (Cf. PAOLAZZI, 2009, p. 61).

Com a expressão “Teus são o louvor, a glória, a honra e toda a benção”, Francisco entende que todo o bem, a bondade e a beleza são devidas somente a Deus, a quem não se sente digno de nominar. É da parte de Francisco uma aclamação cheia de gratuidade pelas obras maravilhosas criadas pelo amor e pela onipotência de Deus, a quem é devido o direito exclusivo do universo criado e a quem somente é devido o louvor. Ele é o sumo Bem, a quem pertence todo o bem presente nas criaturas, e, assim sendo, tudo deve ser restituído a Ele por meio do gesto de louvor e de rendimento de graças. Francisco atribui ao Altíssimo todo o bem e, por isso, todo o louvor e a glória devem ser restituídos a Ele. É ciente de que não deve atribuir louvor a si mesmo, somente vergonha e desprazer. De maneira geral, nos escritos de Francisco, a glória, a honra e o louvor são usados sempre e exclusivamente na relação com Deus (Cf. CA 10).

Onipotente, santíssimo, altíssimo e soberano Deus, que sois todo o bem, o sumo bem, a plenitude do bem, que só vós sois bom (cf. Lc 18-19), nós vos tributamos todo o louvor, toda a glória, toda a ação de graças, toda a exaltação e todo o bem. Assim seja! Assim seja! Amém (LH 11).

Diante do Deus Altíssimo, onipotente e bom, digno de todo o louvor, como pode se sentir o ser humano, senão a própria insuficiência e indignidade ao louvor? Nenhum homem é digno de Te mencionar, afirma Francisco, em perfeita sintonia com o que escreve na Regra não Bulada:

E porque todos nós, miseráveis e pecadores, não somos dignos de te nomear, imploramos suplicantes que nosso Senhor Jesus Cristo, teu Filho dileto, em quem bem te comprazeste (Mt 17,5), junto com o Espírito Santo Paráclito, te dê graças, como agrada a ti e a ele, por todos, ele que sempre te basta para tudo, por quem tantas coisas nos fizeste. Aleluia (RnB XXIII, 5).

Na verdade, se Francisco usasse literalmente a afirmação “não somos dignos de te mencionar”, deveria então silenciar; ele, ao invés, continua elencando os diversos motivos para o louvor ao Senhor. A expressão demonstra a sabedoria de Francisco sobre a incapacidade do homem de louvar dignamente e, exatamente por isso, nasce o convite ao louvor universal.

O louvor das criaturas (3-9)

Esta parte Cântico é composta por uma sequência de sete versos que compreende o louvor a Deus pelas criaturas inanimadas e celestes (sol, lua e estrela) e os quatro elementos cósmicos ou terrestres (o fogo, o ar, a água e a terra), às quais Francisco se une para o louvor, no espírito do salmista: “Os céus cantam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos” (Sl 19,2). De modo análogo, esse fenômeno se dá ao final da Regra não Bulada, o santo pede ajuda, e se une a Jesus, ao Espírito, à Beata Virgem Maria, e aos Anjos e santos, criaturas invisíveis, para o louvor (RnB XXIII, 5).

No Cântico de Frei Sol, são as criaturas do universo visível, as do céu e as da terra que vêm em socorro da insuficiência do homem. Nessas circunstâncias, a elas Francisco une a sua voz: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas” e compreende que, no mundo visível todas as criaturas – especialmente o sol – são manifestação do Criador, “os céus cantam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos” (Sal 19,2.) espelho da sua bondade e verdade. Para Francisco, a beleza e a verdade das coisas falam da Beleza e da Verdade Suprema. Com efeito, tudo o que encontra nas criaturas atribuiu ao Artífice e Criador, ele exulta de alegria em todas as obras das mãos do Senhor e, nas coisas bonitas, intui a Suma Beleza. Enfim, as criaturas são instrumentos do Seu amor, o dom de cada criatura é dom do seu Criador.

Francisco invoca a relação de filiação e paternidade na analogia criatura-Criador e a relação de fraternidade entre as criaturas. Na verdade, essas relações encontram fundamento na paternidade divina que dá a vida, a beleza e a força a todas as criaturas. Para ele, a fraternidade universal se alimenta na experiência quotidiana na qual as criaturas irmãs falam do Pai comum ao ser humano. Francisco as abraça com amor e devoção e com elas eleva uma liturgia de louvor ao Pai e Criador (Cf. 2Cel 165).

As criaturas são invocadas em dupla, feminino-masculino estão em equilíbrio, ternura e vigor, anima e animus, conforme a linguagem da psicologia, o que levou C. Paolazzi a levantar a hipótese que Francisco tenha se inspirado no livro de Eclesiástico.

Tudo o que vive e permanece para sempre, e em todas as circunstâncias tudo lhe obedece. Todas as coisas formam dupla, uma diante da outra e ele não fez nada incompleto. Uma coisa consolida a excelência da outra: quem se fartará de contemplar a sua glória? (Eclo 42,23-25).

Convém evidenciar que cada criatura é invocada como irmão ou irmã, fato notável e significativo porque a relação com as criaturas não apresenta domínio, mas um vínculo e uma relação de fraternidade que deixa transparecer laços íntimos entre ele e as criaturas. O nome de cada criatura vem acompanhado de adjetivos específicos que dizem respeito à utilidade e positividade de cada uma ou à sua beleza. O sol ilumina, é belo, radiante e cheio de esplendor; a lua e as estrelas são claras, preciosas e belas; o vento sustenta; a água é útil, é preciosa e casta; o fogo ilumina a noite, é belo, robusto e forte; a mãe terra sustenta, governa e produz frutos... (Cf. VAIANI, 2015, p. 378).

Francisco convida ao louvor os quatro elementos que compõem a natureza: água, terra, ar e fogo. Canta a bondade, a beleza e a utilidade de todos os seres que compõem a criação, como destaca Celano:

Da mesma maneira, convidava com muita simplicidade os trigais e as vinhas, as pedras, os bosques e tudo que há de bonito nos campos, as nascentes e tudo que há de verde nos jardins, a terra e o fogo, o ar e o vento, para que tivessem muito amor e louvassem generosamente ao Senhor. Afinal, chamava todas as criaturas de irmãs, intuindo seus segredos de maneira especial, por ninguém experimentada, porque na verdade parecia já estar gozando a liberdade gloriosa dos filhos de Deus (1Cel 81,4-5).

Nessa perspectiva, para Francisco, o sol ilumina, é belo, radiante e cheio de esplendor, sua celebração é expressão do reconhecimento visual: “Pela manhã, ao nascer do sol, todos deveriam louvar a Deus que o criou para a nossa utilidade, pois é por ele que os nossos olhos são iluminados durante o dia” (EP 119). Embora o santo, quase cego, sentisse dificuldade de olhar para o astro, conservou todo o seu entusiasmo pelo brilho do sol até o fim da vida, de modo que a imagem não lhe fala somente aos olhos, mas à alma, “de Ti, Altíssimo, é a imagem”. O Sol fala e é sinal de Deus, que “é luz e nele não há treva alguma” (Jo 1,5).

Depois de ter cantando o louvor do dia, Francisco se volta para a beleza da noite, com a lua e as estrelas, claras, preciosas e belas. É notável que o santo olha para a noite não no seu sentido tenebroso, mas esplendoroso, buscando a luz nas criaturas. O louvor evoca o lugar privilegiado que essas realidades cósmicas ocupam na criação: “no céu as formastes”, que na linguagem poética e religiosa invoca o Altíssimo. Os qualitativos que acompanham a lua e as estrelas revelam a experiência maravilhosa de Francisco de vê-las como irmãs luminosas, o brilho e a beleza delas o encantam. Ao qualificá-las de preciosas, Francisco entende que possuem um caráter sagrado, não em si mesmas, mas por serem uma linguagem do sagrado, ligada ao sol e aos reflexos da sua luz (Cf. LECLERC, 1999, p. 84-100).

Quando se refere ao vento, ao ar e ao tempo, o convite ao louvor passa dos elementos celestes (sol, lua e estrelas) aos elementos sublunares (ar, água, terra e fogo). O vento sustenta, a água é útil, preciosa e casta. Ambos, irmão vento e irmã água, na linguagem poética e religiosa, muitas vezes são apresentados estreitamente unidos e formam um par fraterno, seguem um ao outro e se dão as mãos no louvor de Francisco. No ambiente bíblico, por exemplo, é o sopro de Deus que fecunda a água. É também ele que, de certo modo, movimenta as águas e forma ondas.

Diferente das demais criaturas, o irmão vento aparece sem qualitativos, revela-se despido. No entanto, por outro lado, surge celebrado nas suas manifestações: ar, tempestade, calmaria, bom tempo, mau tempo... o que mostra que Francisco não escolhe o tempo, mas o acolhe e apresenta os motivos: “pelos quais às tuas criaturas dás sustento” e lembra o sopro do Criador. Desse modo, para o santo não há mau tempo. À água, que forma um par fraterno com o vento, o poverello não atribui verbo ativo, seu valor está no seu próprio ser, por isso a qualifica com quatro adjetivos: útil, humilde, precisa e casta. O primeiro qualitativo (útil) não se reduz a um utilitarismo pragmático, mas unido aos três que seguem, apresenta a água com um semblante feminino, pura, discreta generosa, cheia de ternura e serviçal, que se doa, que fertiliza e sustenta a vida por onde passa (Cf. LECLERC, 1999, p. 101-120).

O fogo ilumina a noite, é belo, robusto e forte. Francisco parece ter uma preferência pelas criaturas luminosas: o sol, a lua, as estrelas e o fogo, tanto que o adjetivo “belo” aparece três vezes no Cântico e sempre em referência às criaturas luminosas. Francisco demonstrava grande afeição pelo fogo, dada a sua beleza e utilidade. Celano narra, de modo poético, o momento em que Francisco é submetido à cauterização dos olhos sem anestesia, o que revela sua amizade e seu amor ao tão caro irmão: “irmão fogo, o Altíssimo te conferiu um esplendor que todas as criaturas te invejam: ele te fez útil, forte e belo mostra-te também, agora comigo, bom e cortês, pois eu te amei no Senhor até agora” (2Cel 166).

O fogo, para o santo, não é uma criatura anônima, mas uma presença fraterna e viva, com força e vigor, que irradia alegria e robustez, iluminando a noite. Sobretudo é visto como reflexo da luz e da vida ardente em Deus: “No esplendor do fogo, assim como no seu dinamismo exuberante, Francisco contempla o Senhor Magnífico: Irmão fogo, o Altíssimo te conferiu um esplendor que todas as criaturas invejam” (LECLERC, 1999, p. 123).

À terra Francisco atribui os adjetivos de irmã e mãe. A terra é irmã porque também é criatura de Deus como as demais e, como tal, faz parte da grande família das criaturas. Assim sendo, há a comunhão fraterna de Francisco com a terra e, por meio da irmã terra, com Deus criador. É também mãe porque, recorrendo ao livro de Gênesis, é da mãe terra cada uma das criaturas viventes, também o ser humano é nascido da água e da terra, fecundado pelo comando de Deus (Cf. Gn 1,11.20.24). Quanto ao homem criado à imagem e semelhança de Deus, a relação é ainda mais direta: “Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7).

Além disso, a terra possui a função materna de nutrir o ser humano e os animais com ervas e frutos. Francisco condensa no seu Cântico, cantado e escrito de forma poética, o relato do livro de Gênesis, contemplado no livro da criação (Cf. PAOLAZZI, 2004, p. 166-167). Durante a sua vida, Francisco gostava de se retirar nas fendas das rochas, seus lugares preferidos, de acordo com Celano (Cf. 1Cel 71). A caverna é também símbolo materno. Sobre o teto da gruta está a terra mãe, e a fenda na rocha faz lembrar o ventre materno. Outro elemento significativo na vida do Santo de Assis está ligado ao aproximar-se da sua páscoa, quando pede para ser colocado nu na terra nua (Cf. 2Cel 214). É um ato de despojamento supremo que revela a vontade de Francisco de identificar-se com o despojamento de Cristo na cruz. Além disso, a atitude de ser colocado nu sobre a terra revela o sentido de profunda comunhão com ela, que aponta para a mais íntima comunhão Cristo.

Por fim, é notável o envolvimento das criaturas com as duas grandes imagens cósmicas: o irmão sol e a irmã terra. O senhor Sol, viril e celeste, reflete o Altíssimo, o Pai; e a nossa irmã e mãe terra, imagem materna e feminina, que nutre e sustenta as criaturas que se entrelaçam debaixo do sol e sobre a terra. Francisco, com a sua sensibilidade espontânea, positiva e delicada, consegue intuir considerável beleza, significado, profundidade e sacralidade ao contemplar a obra da criação e, nela, cada criatura.

De modo geral, ao mencionar as criaturas – sem desmerecer o valor que Francisco dava a cada uma, com olhar fraterno e universal (fraternidade universal) – não se constitui, essencialmente, como um louvor às criaturas, mas das e com as criaturas ao Altíssimo. Por coerência com o pensamento de Francisco, descarta-se que as criaturas possam ser as destinatárias diretas do louvor “sii lodato per mezzo di tutte le creature...”. Na verdade, a verdadeira glória das criaturas consiste em louvar o seu criador (Cf. PAOLAZZI, 2009, p. 121).

Dessa maneira, é possível enxergar em Francisco um exemplo de humildade e minoridade, e ao mesmo tempo uma voz profética contra toda forma de usurpação, prepotência, vanglória e autossuficiência humana. E isso se justifica porque sabe se colocar na condição de criatura e, como tal, também compreende a quem é devido o louvor: “mas só a Deus se deve dar honra e glória; a si mesmo, vergonha e tribulação” (CA 10; Cf. RnB XII).

O ser humano e os louvores pelas situações da vida (10-13)

Nas estrofes finais, o tema é o ser humano nas suas relações com os outros homens e mulheres e a sua compreensão da morte. A mesma alegria cantada nas estrofes precedentes está presente na situação dramática da morte, de modo a ser um hino de paz, de amor, de serenidade também diante dessa realidade. Assim sendo, Francisco quer que tais realidades humanas – a morte, os conflitos, as doenças e tribulações – tornem-se voz de louvor juntamente com todo o universo (Cf. URIBE, 2019, p. 78).

Os versículos 10-11 refletem a realidade humana do perdão, da enfermidade e das tribulações. Segundo C. Paolazzi, o homem decaído e redimido entra nessa liturgia universal de louvor. “Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor” é um verso dedicado ao perdão e foi inserido ao Cântico por ocasião de um conflito entre Guido, bispo de Assis, e o prefeito Opórtulo. Francisco envia seus frades, que ao cantarem o Cântico conseguem reconciliar os dois (Cf. CA 84).

O louvor ao perdão tem a sua centralidade no amor de Deus: “perdoam por Teu amor”. O amor de Deus é causa e motivo do perdão. Nos seus escritos, em diversos momentos, Francisco afirma que é o amor de Deus que pode abrir o coração para o perdão entre os irmãos e irmãs (Cf. Ad IX; Mn 9).  O perdão possui ainda como fundamento o mistério da cruz no qual o Cristo pendente perdoa os que o crucificaram. Para Francisco, o perdão é motivo de grande alegria como é expresso no episódio da perfeita alegria (Cf. Fior VIII). Do mesmo modo, os sofrimentos, as doenças e as tribulações são associados aos sofrimentos e tribulações do próprio Jesus. O perdão e as tribulações introduzem o homem na liturgia universal, chamando-o a dar graças ao seu Senhor com o louvor de uma vida pacificada no amor e crucificada até o fim com Cristo. A estrofe é ao mesmo tempo um convite ao louvor, uma exortação ao amor e à manutenção da paz e da serenidade diante dos sofrimentos próprios da vida (Cf. PAOLAZZI, 2010, p. 94-99).

No contexto da enfermidade e da tribulação, Francisco recebe o dom e a revelação da certificatio. Ao referir-se ao perdão, às tribulações e às enfermidades, transmite a ideia de suportar com serenidade e paz, como afirma nas Admoestações: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,6). Verdadeiramente pacíficos são aqueles que, com todas as coisas que sofrem neste mundo, por amor de nosso Senhor Jesus Cristo, guardam a paz na alma e no corpo” (Ad 15,1-2). Ao contrário de concepções difusas que sustentam que a paz é sinônimo de ausência de sofrimentos e tribulações, Francisco mostra que tais situações não são obstáculos, mas uma realidade que floresce para a vida porque há como horizonte as realidades últimas. “Bem-aventurados os que suportam em paz, por ti, Altíssimo, serão coroados”.

Os versículos 12-13 refletem a realidade da morte, ou seja, como Francisco encara o fim da vida neste mundo, momento em que vê uma ocasião de louvar a Deus. “Louvado seja, meu Senhor, pela irmã morte”, como nos narra:

O bem-aventurado Francisco, mesmo sofrendo muito pelas enfermidades, louvou ao Senhor com grande fervor do espírito e alegria do corpo e da alma, e lhe disse: “Então, se devo morrer logo, chamai-me Frei Ângelo e Frei Leão, para que me cantem sobre a irmã morte”. Esses frades se apresentaram diante dele e cantaram com muitas lágrimas o Cântico de Frei Sol e das outras criaturas ao Senhor, que o próprio santo fizera em sua doença para louvar o Senhor e para consolar sua alma e a dos outros, no qual canto colocou antes do último um verso sobre a irmã morte, a saber: Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal da qual nenhum homem vivo pode escapar. Ai de quem morrer em pecado mortal. Felizes os que ela encontrar em tuas santíssimas vontades, porque a morte segunda não lhes fará mal (CA 7,8-14).

O texto de Celano relata os últimos dias da vida do santo, vividos em Santa Maria dos Anjos; em oração e exultando em espírito de louvor, acolheu a irmã morte e, ao mesmo tempo, exortava os frades a fazê-lo. Conforme o hagiógrafo, o momento final da vida de Francisco neste mundo é vivido com louvor, fraternidade e celebração.

Passou em ação de graças os poucos dias que ainda restavam até sua morte, ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia. Convidou também todas as criaturas ao louvor a Deus e, usando uma composição que tinha feito em outros tempos, exortou-as ele mesmo ao amor de Deus. Chegou a exortar para o louvor até a própria morte, terrível e aborrecida para todos, e, correndo alegre ao seu encontro, convidou-a com hospitalidade: “Bem-vinda seja a minha irmã morte!” (2Cel 217,5.7-8).

É notável a consciência de Francisco diante de uma realidade dramática, mas encarada com serenidade própria de quem sabe em quem está sua esperança, tanto que se refere à morte do ponto de vista corporal. Em tom exortativo, afirma a infeliz condição de quem morre no pecado e a vida beata de quem, como ele, vive e morre na vontade do Senhor: “Ai daquele que morre em pecado mortal, e bem-aventurados os que os encontrar em tua santíssima vontade”. A mesma dimensão é encontrada em outros escritos como na Carta aos Fiéis, em que afirma a condição feliz de quem vive na penitência e a condição infeliz de quem não vive segundo a vontade do Senhor, como se observa no Evangelho: “Feliz o servo, que o Senhor, à sua chegada, encontrará vigilante (Lc 12,37). Já na Regra afirma: “Bem-aventurados aqueles que morrem na penitência, porque estarão no Reino dos Céus” (RnB XXI, 7). Se, por um lado, o apóstolo Paulo afirma a morte como o último inimigo a ser vencido (Cf. 1Cor 15,26). Francisco acolhe a morte com uma imagem doce, imagem de uma irmã. Menciona ainda a segunda morte, baseado em Apocalipse: “Não tenhas medo do que irás sofrer. Mostra-te fiel até a morte e eu te darei a coroa da vida. Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às Igrejas: o vencedor de modo algum será lesado pela segunda morte” (Ap 2, 10-11).

Mesmo que não haja unanimidade entre os estudiosos se o Cântico tenha sido escrito em um único momento ou se as duas últimas estrofes em momentos diversos, o que merece destaque é o fato de que Francisco não compõe somente um cântico de natureza ecológica. A presença das estrofes do perdão, da doença, da tribulação e da morte, realidades antropológicas, mostra que a sua consideração do cosmos não para nos elementos naturais, mas compreende também o mundo do ser humano, que no cosmos ocupa um lugar relevante (Cf. VAIANI, 2015, p. 379). Se composto em diversos momentos, é fato notável a possibilidade de que o santo, nos últimos momentos da vida, tenha vivido por algum tempo em três lugares: em São Damião, no palácio episcopal de Assis e na Porciúncula, onde morre.

No verso final (v. 14), Francisco convida, em tom exortativo, ao louvor permanente e ao serviço humilde ao Senhor: “Louvai e bendizei ao meu Senhor, rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade”. Esse verso retoma o verso inicial com o verbo dominante em todo o texto: “louvai”. Da oração de louvor, Francisco passa à exortação dos ouvintes ao louvor ao “meu Senhor”, expressão usada por ao menos 8 vezes, em sequência de Louvado sejas ou de louvai. Quem lê é convidado a se unir ao louvor de maneira que o Cântico se torna uma exortação ao louvor. O Senhor a quem se dirige o louvor é o meu Senhor. Esse apelativo possessivo é sinônimo de profunda reverência e intimidade entre Francisco e o Senhor. O louvor é agradecimento, é exortação ao louvor e ao mesmo tempo empenho de vida que se exprime no serviço. O texto termina com a expressão “com grande humildade”, que reflete o nosso nada diante do tudo (Cf. VAIANI, 2015, p. 376).

Pois seu espírito estava, então, em tamanha doçura e consolação, que queria mandar buscar Frei Pacífico, que no século era chamado rei dos versos e foi um mestre muito cortês de cânticos, e dar-lhe alguns frades bons e espirituais, para que fossem pelo mundo pregando e louvando a Deus. Pois queria e dizia que, primeiro, algum deles, que soubesse pregar, pregasse ao povo, e depois da pregação cantassem os Louvores do Senhor como jograis de Deus. Terminados os Louvores, queria que o pregador dissesse ao povo: “Nós somos os jograis do Senhor e nisto queremos a vossa remuneração, isto é, que estejais na verdadeira penitência”. E dizia: “Que são os servos de Deus senão, de algum modo, uns jograis seus, que devem mover o coração dos homens e levantá-los para a alegria espiritual?” E especialmente dos frades menores dizia que foram dados ao povo para sua salvação (CA 83,25-30).

O Cântico de frei Sol suscita a imagem dos giulliari del Sinhore, jograis do Senhor, os cantores e trovadores, da arte e da poesia, elementos característicos da cultura cortês e cavalheiresca bem conhecida por Francisco e usada para convidar ao louvor a Deus e à alegria espiritual. A relação de Francisco com as criaturas, por um lado, manifesta a bondade e a beleza de Deus e, por outro, as mesmas são instrumento do louvor de Deus. Seja como for, Francisco tem um olhar profundamente positivo das criaturas, diferente de certa tendência espiritual do período medieval, que despreza o ser humano e as coisas do mundo como sinônimo de pecado, ou de um dualismo entre matéria e espírito, como é o caso dos Cátaros e outros que colocavam em oposição a dimensão material com a dimensão espiritual, como se somente o mundo espiritual pertencesse a Deus. Francisco, com o olhar positivo, reconhece tudo como dom do Altíssimo, do qual as criaturas provêm e a Ele conduzem. O universo não pode ser mau porque fruto do amor, da beleza e bondade de Deus, e cada criatura possui uma função dentro da obra da criação (Cf. VAIANI, 2015, p. 380-382).

Considerações finais

O Cântico de Frei Sol apresenta uma imagem de Francisco como homem do louvor, que brota da sua integridade e revela sua sensibilidade. Com a capacidade de observar tudo com a máxima atenção e captar a beleza individual de cada criatura, Francisco, verdadeira criança evangélica, de coração puro, sabia descobrir e adorar na criação a onipotência, a beleza e a bondade do Criador; nas coisas belas, reconhece a suma Beleza e, no bem, reconhece o sumo Bem.

O louvor é composto por três momentos de um itinerário interior que conduz à contemplação: conhecer que Deus é o sumo Bem, único bem, de onde provém todo o bem; reconhecer nos bens do mundo que tudo vem de Deus e é vestígio Dele “Sois o sumo e eterno Bem, do qual procede todo o bem, sem o qual não há nenhum bem”; restituir através do louvor Àquele a quem todo bem pertence. Ao Altíssimo e Onipotente pertence todo o louvor. É o momento em que o crente, uma vez conhecendo e reconhecendo a Deus como sumo Bem, do qual provém a verdade, a beleza e a bondade das criaturas visíveis e invisíveis, realiza o grande retorno de todo o bem à sua fonte originária por meio da ação de graças, da glória e do louvor. Desse modo, Francisco não se apropria de nada por reconhecer que tudo é dado pelo Senhor e a Ele pertence. “E devolvamos todos os bens ao Senhor Deus Altíssimo e reconheçamos que todos os bens são dele e demos graças por tudo a ele, de quem todos os bens procedem” (RnB XVII, 17).

Embora tenha vivido em um contexto bem diverso do atual, no qual nem se falava em aquecimento global e tantas expressões ligadas à crise ambiental, o modo fraterno como Francisco vê e se relaciona com cada criatura, expresso no Cântico, é um grande apelo ao ser humano que, muitas vezes, é movido pelo espírito de domínio inconsequente, pelo egoísmo desenfreado, agressivo e destrutivo da casa comum. O santo interpela o ser humano a sair da superficialidade que cega a capacidade de sensibilizar-se, de encantar-se diante da individualidade, da beleza, e do valor de cada criatura. Desafia a resgatar a sensibilidade de cantar a beleza da vida em todas as suas formas e rostos, e nelas a bondade Infinita.  

O fato de que Francisco chama as criaturas de irmão e irmã é significativo e exortativo porque a relação com as criaturas não é aquela de domínio, mas um vínculo e uma relação de fraternidade. O modo fraterno de ser é sinônimo de amor e de cuidado. Com o olhar fraterno, o ser humano não se entende como um ser à parte do cosmo como se canta: “sou uma parte de uma imensa vida”, nem mesmo egoisticamente superior, mas se percebe interligado e conectado a tudo e a todos como bem insiste o papa Francisco na sua encíclica Laudato Si: o ser humano é terra, ar, água, fogo, é em relações, é vida e morte. Nessa dinâmica se compreende que não é possível o homem e a mulher estarem bem, saudáveis e em harmonia em um planeta agredido, machucado e doente. O estilo despojado e austero de Francisco ensina, como ser humano, a ter a justa medida nas relações com as criaturas, a não ser usurpador e desfrutar de modo inconsequente dos bens da criação. A atitude do louvor contém o respeito e a consideração a todas e a cada individual criatura.

A presença das estrofes do perdão, doença e tribulação e da morte – realidades antropológicas – mostra que a sua consideração do cosmos vai além dos elementos naturais, na verdade compreende também o mundo do ser humano que no cosmos ocupa um lugar relevante. A forma como expressa tais realidades apresenta luzes e respostas para o modo de encarar os conflitos, sofrimentos, tribulações, doenças, e até a realidade da morte à luz da Paixão e do sofrimento de Cristo, numa visão de fé e escatologia frente a uma ideologia hedonista e frágil diante das realidades de perda, dor o sofrimento.

O modo como Francisco olha e enfrenta as naturais situações da vida – a doença, a idade, as limitações e crises humanas – é uma escola e um convite a viver tudo à luz da fé. Enfim, referente à finitude da vida, culminada na realidade da irmã morte, Francisco ressalta que ela se abre à plenitude e à eternidade da ressurreição.

Bibliografia

DOYLE,Eric. Francisco de Assis e o Cântico da fraternidade universal. São Paulo: Paulinas, 1985.

FONTES FRANCISCANAS E CLARIANAS. Petrópolis: Vozes/FFB, 2004.

FONTIF RANCESCANE. Padova: Editrice Francescane, III Ed., 2011.

FRANCISCUS ASSISIENSIS. Scripta. Criticeedidit Carolus Paolazzi, Grottaferrata (Roma): Editiones Collegii S. Bonaventurae ad Claras Aquas, 2009.

LECLERC, Eloi. O Cântico das criaturas: os símbolos da união. Petrópolis: Vozes, 2ª ed, 1999.

PAOLAZZI, Carlo. Il cantico di frate sole. Assisi: Porziuncola, 2010.

__________. Lettura degli Scritti di Francesco d’Assisi. Milano: Biblioteca Francescana,2004.

__________. Studi sugli Scritti di frate Francesco.Grottaferrata(Roma): Editiones Collegii S. Bonaventurae ad Claras Aquas, 2006.

URIBE, Fernando. L’identitá Francescana: contenuti fondamentali del carisma di san Francesco d’Assisi. Milano: Biblioteca Francescana, 2019.

VAIANI, Cesare. Storia e teologia dell’esperienza spirituale di Francesco d’Assisi. Milano: Biblioteca Francescana, 2015.

http://centrofranciscano.capuchinhossp.org.br/

Autor:
Frei Márcio José Tessaro, OFMCap
No items found.
Comente