São Francisco das Chagas no Brasil
Seguindo a saga dos centenários franciscanos: presépio (2023), estigmas (2024), cântico do Irmão Sol, morte (2026) e canonização de Seráfico Pai (2028); celebramos este ano o VIII Centenário da estigmatização de Francisco de Assis.
Todos estes fatos e aspectos da mesma mística e cristocêntrica espiritualidade de Francisco falam também, profundamente a todos nós da família franciscana no Brasil, herdeiros que somos desde a primeira missa celebrada por um filho de Francisco, de fértil tradição de presença e carisma nesta Terra de Santa Cruz. Com nuances e interpretações próprias de cada tempo, a devoção a São Francisco “das Chagas” chegou até nós com as caravelas portuguesas, foi semeada pelos missionários enviados para a evangelização e catequese indígena do novo mundo e solidificada pelo sodalício da Ordem Terceira Franciscana, da qual faziam parte de reis a pessoas simples.
Não é preciso grande apuro histórico-crítico para constatar a admiração e influência que Francisco exerceu no catolicismo lusitano. A arte sacra, sobretudo, mas também a documentação histórica o atestam. Por exemplo, o alto-relevo do arco da tumba do rei D. Fernando I de Portugal, representando a cena da estigmatização no Alverne ao modo de Giotto (sec. XIV),registrou para sempre a pessoal devoção do monarca, terciário franciscano, a este extraordinário evento na vida de Francisco.
A devoção a São Francisco, impregnada da mentalidade da época, revela um traço hoje não muito evocado da intercessão do santo: santo milagroso e poderoso interventor pela salvação das almas do purgatório. Num tempo de viagens imensas, guerras e pestes, a preocupação com a danação eterna não esperava por complicadas discussões teológicas ou doutrinárias. No Brasil nascente, encontramos este São Francisco “salvador das almas do purgatório” nos painéis em azulejo português dos conventos de São Francisco de Salvador e Olinda e na missão de São Miguel que daria origem à primeira vila e cidade na Terra de Santa Cruz, hoje Porto Seguro na Bahia, local onde, há alguns anos resgatou-se do leito de um rio uma imagem lígnea do patriarca de Assis estigmatizado, considerada a primeira imagem do santo a chegar ao Brasil e que foi apresentada durante as celebrações dos 500 anos do descobrimento do Brasil (2000) em Coroa Vermelha (Porto Seguro, Bahia), missa presidida pelo então Secretário de Estado Vaticano, cardeal Ângelo Sodano no local considerado o mesmo onde o franciscano Frei Henrique Soares de Coimbra celebrara a primeira missa no Brasil aos 26 de abril de 1500.
Claramente esta devoção às Chagas de Francisco chegou ao país, difundiu-se e conserva-se até aos nossos dias pela região hoje denominada como Nordeste brasileiro, onde as primeiras caravelas e missionários aportaram. No processo de colonização, geralmente partindo do litoral para o sertão por rios ou em viagens fatigosas e arriscadas, com o passar dos anos, missionários e esmoleiros franciscanos no Nordeste difundiram a devoção mais que no resto do país onde mais popular é Santo Antônio. Antes dos conventos dos franciscanos ou capuchinhos, no interior do sertão havia a presença de renomados terciários franciscanos, influentes personagens na sociedade civil e cena religiosa. As povoações e fazendas serviam como ponto de apoio dos frades itinerantes que cumpriam a desobriga, catequisavam, pregavam missões, construíam oratórios, capelas, cemitérios, açudes, pontes, erguiam cruzeiros nas encruzilhadas e montes. Deste modo, sem a estrutura das reduções e aldeamentos, próprios dos jesuítas, os franciscanos iam permeando os locais mais longínquos com a presença do santo fundador. Tal papel tornou-se ainda mais relevante quando da expulsão dos jesuítas em 1758. Lugar central e permanente da devoção popular a São Francisco das Chagas é a pequena cidade de Canindé, no Ceará, chamada, por mérito, de “Assis Brasileira”.
Conforme o historiador cearense, Senador Pompeu, em 1775 construiu-se à beira do Rio Canindé uma acanhada capela a São Francisco das Chagas, fruto de um voto ou promessa por graça alcançada. Segundo o mesmo, por tratar-se de modesto oratório edificado em propriedade particular logrou muitas reclamações dos vigários que deveriam deslocar-se a local tão ermo. Somente em 1787 inicia-se a construção da igreja com a escritura de doação da “Fazenda Santa Rosa a São Francisco das Chagas”. A construção durará 10 anos.
O fato é que, historicamente, a devoção franciscana evoca em Canindé, antes, durante e após a construção paulatina da atual cidade-santuário, aspectos da tradição europeia, devoção popular acentuando-se o caráter taumatúrgico do santo e, sobretudo sua poderosa intercessão no pós-morte, conforme diz um antigo hino: “defensor da humanidade, perante Teu Redentor”. Hoje leríamos isto através do filtro da Indulgência da Porciúncula (Perdão de Assis), porém, à época, sepultar alguém com a veste franciscana ou só o cordão era garantia de entrada no paraíso. Tal costume permanece hoje nalgumas regiões do Nordeste e Norte do Brasil e ainda, como pagamento de promessas, há pessoas que, por toda a vida, durante o novenário ou antes disso começam a usar o “traje franciscano” (hábito) ou roupas de tecido de cor marrom que nos centros urbanos são oferecidos aos clientes como a tendência do momento.
Deste modo, Canindé é parte importante do universo das romarias nordestinas, estimuladas pela presença de importantes personagens que construíram pela religiosidade popular um imaginário coletivo que permeia o ser nordestino. Os freis, padres, beatos e beatas que percorreram sertão adentro para reunir populações de um “desertão abandonado por Deus e pelos homens”, como diria o grande Padre Antônio Vieira ao cunhar a origem da palavra “sertão”, espalharam nos quatro cantos nordestinos devoções do Bom Jesus, Santa Cruz, Nossa Senhora e São Francisco, sobretudo.
Com a contínua presença de franciscanos (observantes e capuchinhos) a pregar missões na região de Canindé, presença de um sacerdote terciário franciscano e criação da paróquia por decreto régio de D. João VI, a nomeação do primeiro vigário Pe. Francisco de Paula, terciário franciscano, no final de 1700 e primeiros anos de 1800 há uma presença eclesiástica institucional naquele ambiente. Fato interessante é a libertação da escravatura em Canindé que ocorrerá em 1883,antes que fosse promulgada a Lei Áurea.
Com o crescente fluxo de fiéis que, advindos até de outros estados acorrendo a Canindé a pé, em montarias de todo tipo, com jornadas que poderiam durar meses, o então bispo de Fortaleza encontra na missão dos Capuchinhos do Norte da Itália (Milão) um modo de melhor atender os romeiros. Com achegada dos Frades Capuchinhos (1898) deu-se nova dimensão à igrejinha que abrigava a pequenina imagem do santo, trazida pelo português Francisco Xavier e que originara ali o culto ao patriarca de Assis e carinhosamente chamado pelo povo de “São Francisquinho”, tomando a forma solene do santuário que seria a futura basílica como a vemos hoje. Estabeleceu-se um culto além do devocional que também catequizasse e liturgicamente embelezasse a grande festa dos peregrinos. A construção do grande convento, escola de artes e ofícios, tipografia, criação do informativo “O Santuário”, (hoje ainda publicado), foram alguns dos aspectos da missão dos Capuchinhos que incrementaram a devoção a São Francisco das Chagas de Canindé.
Após 25 anos, os Capuchinhos entregaram o cuidado pastoral da terra de São Francisco aos Frades Menores que até hoje continuam tal serviço. Expandindo a atividade missionária para implantação da Ordem no Norte do Brasil (do Ceará ao Amazonas), os Capuchinhos tomaram para as várias fases da circunscrição o patrocínio de São Francisco das Chagas, de modo que, a atual Província São Francisco das Chagas do Ceará e Piauí traz em seu DNA franciscano e missionário estes componentes da especial devoção nordestina ao santo que, como a gente sofrida, veste-se de marrom (como o couro dos arreios do vaqueiro do sertão), calça sandálias como o nordestino e traz as feridas do sofrimento e da pobreza que assolaram historicamente aquela gente.
Ao cantar “as chagas trazes do Salvador”, o povo continua a ver em Francisco uma sombra que abriga e uma brisa suave à beira do “rio da integração nacional”, o “velho Chico” que leva não apenas o nome de um santo, mas de um homem, cuja simplicidade, amor aos sofredores e defesa da Criação falam de modo claro, direto e ininterruptamente dos sangramentos a serem estancados por uma esperança que não se canse de anunciar com a vida a paz e o bem. Eis o que o povo espera de nós, filhos e filhas de Francisco das Chagas: vê-lo vivo, presente, próximo e como “seu santo” e amigo em cada um de nós.
Frei Francisco Lopes, OFMCap
London, ON(Canadá), 17.09.2024:800 ANOS DOS ESTIGMAS DE S. FRANCISCO
(Vide: Frei Venâncio Willek, OFM, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará)