São Francisco e Santa Clara: a coragem de serem diferentes
Para alguns estudiosos franciscanos, como Frei Lázaro Iriarte, o advento de São Francisco e Santa Clara, naquele contexto da Idade Média, significou o desabrochar da “nova primavera” da vida religiosa, até então caracterizada com base no modelo monástico. Constata-se aí o florescimento de grupos pauperistas itinerantes, contrastando com o princípio de stabilitas loci do monacato beneditino. Os santos de Assis viraram a página da história, com seu propósito de vida evangélica, baseado no seguimento radical de Jesus Cristo; pobre, simples, humilde e crucificado. Foram capazes de descer a escala social, em direção à periferia, ao encontro dos marginalizados. Trocaram suas vestes luxuosas pelo burel dos pobres. Resistiram aos privilégios e caprichos pessoais, por causa de horizontes deslumbrantes. Valentes, trilharam as veredas da ternura e do amor fraterno. Em Deus, ressignificaram as próprias existências. A seguir, vamos destacar alguns momentos marcantes da bravura inusitada dos dois jovens assisenses.
Sem dúvida, nada se deu por acaso. O confronto frequente com a Palavra de Deus despertou neles atitudes desconcertantes. Aos poucos, suas escolhas e decisões germinavam no terreno fértil do coração. Tomás de Celano enfatiza o espírito resoluto do Poverello, depois de ter escutado e compreendido o Evangelho referente à missão dos discípulos de Jesus. Vibrando de entusiasmo, ele exclamou:
“É isso que eu quero, é isso que eu procuro, é isso que eu desejo fazer com todo o meu coração” (cf. 1Cel 22). Um homem disposto a começar algo novo: “Desamarrou imediatamente os calçados (cfr. Ex 3,5), tirou o bastão das mãos e, contente com a túnica, substituiu a correia por uma corda” (cf. Idem).
Evidentemente, estava consciente das consequências de suas opções.
A ruptura com o pai foi um momento decisivo em sua vocação. A partir daquela hora, havia assumido o que realmente buscava. As fontes franciscanas sublinham o episódio com tintas fortes: “sem dizer nem esperar palavra, despiu e jogou suas roupas, devolvendo-as ao pai. Não guardou nem as calças: ficou completamente nu diante de todos” (cf. 1Cel 15). E, assim, liberto e despojado de tudo, disse: “Agora poderei dizer livremente: Pai nosso, que estais nos céus, e não pai Pedro de Bernardone, a quem devolvo tanto o dinheiro como a minha roupa toda. Irei nu para o Senhor”. (Cf. 2Cel 12; tb LM 2,4). Sua intrepidez supunha que havia encontrado a “pérola preciosa” do Reino (cf. Mt 13,44-46). Agora, trilharia as estradas do mundo, despido de quaisquer coisas. Um homem livre para amar.
Quando os frades, reunidos em capítulo, procuraram convencer Francisco a tomar o caminho mais fácil, algo já traçado e pronto, foram duramente repreendidos: “Meus irmãos, meus irmãos, Deus me chamou para o caminho da simplicidade e da humildade e, na verdade, indicou-me este caminho, para mim e para aqueles que querem crer em mim e imitar-me. E por isso, não quero que me citeis outra regra, nem de São Bento, nem de Santo Agostinho, nem de São Bernardo, nem outro caminho e forma de vida além daquele que misericordiosamente o Senhor me revelou e concedeu. E o Senhor disse-me que eu devia ser como um moço doido neste mundo...” (cf. EP 68). Neste sentido, o Santo não queria qualquer comodidade para si e para os seus. Estava disposto a encarar a realidade com os pés no chão da história.
Ao lado de Francisco, está Clara. Uma mulher firme em seus propósitos. Aos 18 anos de idade, na noite de 18 de março de 1212, depois do Domingo de Ramos, abandonava a casa paterna, para juntar-se ao pai espiritual e seus companheiros, na capelinha de Santa Maria da Porciúncula (cf. LSC 7-8). A fuga aconteceu pela “porta dos mortos”, querendo indicar sua radicalidade em deixar para trás todas as comodidades e seguranças familiares. Trocava as roupas caras dos nobres pelo tecido grosseiro e o surrão dos mendigos.
Abraçando o ideal da simplicidade, quatro anos depois de sua conversão, ela tratou de solicitar à Cúria romana o “Privilégio da Pobreza”. Referia a algo inovador na Igreja. O papa Inocêncio III acolheu seu pedido através da bula “Sicut manifestum est” (1216). Seu sucessor, Gregório IX, que a estimava muito, quis convencê-la a abrir mão do austero modo de viver, mas ela não cedeu: “Quando tentou convencê-la a aceitar algumas propriedades que oferecia com liberalidade pelas circunstâncias e perigos dos tempos, ela resistiu com ânimo fortíssimo e não concordou, absolutamente. Respondeu o Papa: ´Se temes pelo voto, nós te desligamos do voto´, mas ela disse: ´Pai santo, por preço algum quero ser dispensada de seguir Cristo para sempre`” (cf. LSC 14). Jamais recuara diante dos desafios da caminhada.
Nessa época, diversos grupos religiosos se colocaram em marcha a Roma, para pedir privilégios ao Papa, a fim de preservar sua inspiração, sendo obrigados pela Igreja a aceitar regras antigas, sobretudo, a Regra de São Bento. Para Frei José Carlos Pedroso: “a originalidade de Clara está em ter pedido o algo novo: que ninguém pudesse impedir suas Irmãs de serem pobres”. Em outras palavras, ela buscava guardar fidelidade aos ideais franciscanos que havia abraçado com suas companheiras.
Em tudo, Clara procurou ser fiel ao ideal do Seráfico pai. Desde o início, foi tecendo sua própria Regra com base no jeito de viver dos Frades Menores. Por várias vezes, resistiu às imposições da Sé Apostólica, com suas regras, que ignoravam os valores franciscanos da pobreza, da fraternidade e da simplicidade. A título de exemplo, temos a Regra do Cardeal Hugolino (1219) e a Regra do Papa Inocêncio IV (1247). Pouco tempo depois (1250), livre para seguir no mesmo carisma, Clara se animou a continuar elaborando sua Regra. Foi a primeira escrita por uma mulher, aprovada com bula pela Igreja, dois dias antes da morte da Santa, em 9 de agosto de 1253. Assim, depois de persistentes lutas, a “plantinha” do Poverello permaneceu vicejante até o fim.
Revigorados na experiência sensível de Francisco e Clara, os franciscanos e as franciscanas de hoje e de amanhã, somos chamados a fazer a diferença, pela “revolução da ternura”; pela vibração de viver em fraternidade; no cuidado das criaturas; no amor aos pobres e esquecidos da sociedade; na luta por um mundo de justiça e de paz; no restauro da humanidade, ferida em sua dignidade; pela coragem em gastar a própria vida, pela causa do Evangelho.