Homilia Dominical - XXV Domingo Comum

Homilia Dominical - XXV Domingo Comum

Entregar-se e se oferecer: transmitir o melhor que se tem”.

- “O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens” (v. 31). Para sermos sinceros, podemos afirmar que viver é se defender. Afinal, queremos sempre ter razão, fazer nossas vontades e nosso sentido de justiça. Nada de mal, e, até certo ponto, não deixa de ser justo. Já nascemos com o “instinto” de defesa para não cairmos nas mãos dos outros.

Porém... da defesa de si pode-se passar ao ataque. Confundimos nossa sobrevivência com o ter os outros e as situações em nossas mãos, em nosso poderio, em nosso comando. Armamo-nos de medo que outros e coisas nos sejam tirados, e dividimos o “mundo” e nos organizamos num estilo de vida que organiza os homens entre os que valem e aqueles que não valem, em maiores e em menores, em superiores e inferiores. E, assim, a vida para nós passa a ter sentido somente enquanto consigo manipular os outros, em “devorar” os outros, fazendo do outro um objeto, e não deixando espaço para que o outro tenha voz e vez com suas opiniões, seu jeito de ser, suas aptidões.

Estranho! Enquanto temos medo de nos “perder” caso caiamos nas mãos alheias, Jesus se entrega nas mãos alheias. Para Jesus, ser entregue nas “mãos dos homens” é a chance, a possibilidade, de sua mais alta realização, pois, então, o veneno da maldade presente nas “mãos dos homens” será vencido pelo antídoto, pelo remédio, que é o próprio Senhor. É permitindo-se, entregando-se e deixando-se agarrar pelas mãos maldosas, que Jesus, o nosso Senhor e Messias, consegue se “infiltrar” na humanidade pecadora e tenebrosa. E, desta maneira, por dentro das mãos dos homens, o nosso Deus semeia, fermenta, cura as feridas, torna inócuo o veneno da maldade: ... diz o Senhor: porei a minha lei no seu interior e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Jer 31, 33).

- “O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens”. “... será entregue” é também uma maneira de falar do amor incondicional que reinava no sagrado coração de Jesus, das labaredas amorosas do coração de nosso Deus que não se apagam e nem se enfraquecem mesmo diante de todo e qualquer mal e resistência ao bem: “... se somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2, 13); “Tomai, comei e bebei, meu corpo e sangue, eu mesmo entregue por vós” (cf. Lc 22, 19). Jesus nos revela sua liberdade interior em promover o bem e a verdade. Nenhuma perversidade do mundo tem a capacidade de chantagear sua liberdade interior, nenhum mal o impede de reagir com o bem. “Quem nasce do Espírito é como o vento: ninguém sabe de onde vem nem para onde vai”, é livre, livre até de si mesmo, pois a vida foi entregue por uma causa maior, a causa do Reino que combate contra o mal.

Logo após se entregar nas mãos dos homens, quando o império da maldade mata o Senhor na cruz, Jesus se entrega novamente: “Em tuas mãos, ó Pai, entrego o meu espírito”. As mãos dos homens não têm a última palavra. O Pai é o motivo pelo qual Jesus com grande confiança não reage a agressão e violência com agressão e violência. Afrontar o mundo cheio de mãos perigosas e maliciosas deixando-se agarrar por elas é a mesma coisa de não reagir o mal com o mal. O Senhor da vida dá a vida, sabe que a vida é mais forte e vence o mal, e por isso não teme ser aprisionado por outras mãos: “O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens, e matá-lo-ão; e ressuscitará três dias depois de sua morte”.

- “Mas não entendiam estas palavras; e tinham medo de lho perguntar” (v. 32). Seus discípulos estavam como que surdos e mudos, “impermeáveis”, para com aquelas palavras que falavam de uma entrega em mãos alheias. Não queriam nem saber; preferiam não perguntar justamente para não ouvirem o que não queriam ouvir. Jesus falava do seu amor por nós, do fato de se entregar, de se pôr em nossas mãos, isto é, falava daquela lógica divina de vencer o mal com o bem, de vencer as trevas com a luz, de eliminar a malícia com a inocência, de vencer a agressividade com a mansidão. “Entregar-se nas mãos dos homens” é outra forma de falar do amor de Deus e de como Deus usa de todas as formas a fim de que esse amor nos alcance. Os discípulos não querem ouvir falar disso, parecem possuídos pelo demônio “surdo e mudo”, se negam a entender a dignidade que temos aos olhos de Deus e o quanto somos amados por Ele ao ponto de se deixar agarrar por nossas mãos. Somente aceitando tal “entrega de Deus” é que a humanidade conseguirá passar adiante a corrente do bem, e o bem nascerá em nossos corações e nos deixaremos também entregar nas mãos alheias.

Podemos também supor que não perguntaram nada a Jesus porque para eles “aquele negócio” de se entregar nas mãos dos homens fosse um problema dele, de Jesus, não deles. Eles tinham outros problemas. Ora, eram os discípulos mais próximos, o grupo dos doze, formavam o colégio apostólico, eram os sucessores de Jesus e com a morte deste se viam preocupados de organizar o futuro do grupo e também verificar “quem ficará com o quê”, “quem vai herdar o quê”. A luta pela sucessão se aproxima.

- “Em seguida, voltaram para Cafarnaum. Quando já estava em casa, Jesus perguntou-lhes: De que faláveis pelo caminho? Mas eles calaram-se, porque pelo caminho haviam discutido entre si qual deles seria o maior” (vv. 33-35). Pelo “caminho” os discípulos discutiam e disputavam. Não deixa de ser propícia a pergunta: o que andamos nós discutindo e disputando ao longo do nosso caminho e dias de nossas vidas que passam?

Os discípulos se comportam de forma pervertida, como se pervertidos fossem: enquanto Jesus anuncia sua morte, eles disputam a “herança”. De fato, discutiam e disputavam quem seria o maior, quem herdaria a sucessão, já que o “chefe” estava para morrer. Coisa feia!

A busca de ser “maior” do que os outros nasce de um sentimento muito triste, isto é, o sentimento de insignificância. A pessoa que se sente insignificante, não se vê importante e valorizada pelo simples fato de ser filha de Deus, e daí termina por consumir seus dias na agonia e luta de ser maior do que outras pessoas. Quando eu não me sinto bem comigo, não me sinto amado no mais íntimo meu, tendo a querer ser outro. E, esquecendo-se de mim, “invento-me uma pessoa maior”, crio uma ilusão de mim mesmo ou entro em disputa com outros.

Em Marcos 10, 35ss a a luta para ser mais importante do que os outros chega ao cúmulo do descaramento. João e Tiago pedem abertamente os primeiros lugares, quase que dizendo que “a história de dar a vida, ser entregue nas mãos dos homens, é problema do Mestre Jesus”, não deles.

Tem um salmo, o n. 8, que narra a grandeza de Deus e de como é típico do grande Deus engrandecer os humanos: “Que é o homem mortal para que te lembres dele e o filho do homem, para que o visites? Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés”. Enquanto isso tendemos a nos sentir importantes enquanto diminuímos os outros, nos considerando superiores tendo-os em “nossas mãos”. Não esqueçamos: a lógica divina é descobrir, revelar e manifestar a grandeza do outro.

Bom...podemos disputar, discutir, rivalizar: "Amai-vos mutuamente com afeição terna e fraternal. Adiantai-vos em honrar, estimar, uns aos outros”. (Rm 12, 10); "Nada façais por espírito de partido ou vanglória, mas que a humildade vos ensine a considerar os outros superiores a vós mesmos”. (Fl 2, 3).

- “Sentando-se, chamou os Doze e disse-lhes: Se alguém quer ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos” (v. 35).

O nosso Senhor e Deus não tira de nós o desejo de ser o primeiro. Podemos, sim, ser o primeiro. Ele acolhe, educa e orienta o nosso desejo para o melhor.  Queres ser o primeiro? Seja o último de todos e servo de todos. Jesus, aqui, nos oferece a possibilidade de experimentar uma vida diferente. Podemos lidar com as pessoas, sempre à mercê do medo de que alguém mais capaz tome o nosso lugar, convivendo, assim, em constante rivalidade. Outra forma de lidar com as pessoas nos é mostrada por Jesus. É a forma marcada pela confiança e a possibilidade de comunhão. Já que os discípulos disputavam pela sucessão, Jesus os convida a tomarem o lugar d´Ele (“Peguem o meu lugar”). Podemos bem imaginar Jesus dizendo-lhes: “O verdadeiro primado (o primeiro lugar) é o primado do amor, e como o amor é servir, não é dominar, não é ter os outros nas garras, mas se pôr nas mãos alheias, seja servo de todos. Esta é a única grandeza que gera vida e que vence o mal que envenena nossas vidas, nossas famílias, nossos grupos, nosso mundo.

São Maximiliano Maria Kolbe quando se entregou nas mãos dos carrascos nazistas a fim de salvar um pai de família, em sua singeleza de sacerdote católico, estava vencendo o mal enquanto foi capaz de se colocar na pele do outro, foi livre até dele mesmo, pois o seu “eu” não lhe foi de obstáculo para amar, pois dispunha daquela “liberdade interior” que o fazia semelhante ao Mestre (“O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens”).

- “E tomando um menino, colocou-o no meio deles; abraçou-o ...” (vv. 36).

O ato fundamental de servir é acolher o outro. É mais cômodo servir do que acolher. Acolher exige criar um espaço interior, uma espécie de diminuição de si ou esvaziamento interior a fim de que o outro surja, apareça, tenha voz e vez. Na lógica do amor, primeiro vem a acolhida do outro, depois o fazer algo por ele. Colocando o menino no meio de todos, Jesus nos ensina que o numa comunidade cristã o menor ocupa o centro das atenções. Isso é Palavra de Deus, pois nos corrige na tentação de sempre colocar no centro de nossas atenções os “maiorais”. O Papa Francisco vem falando de periferias existenciais justamente para lembrarmo-nos dos irmãos e irmãs mais frágeis de nossas comunidades, desde as fragilidades socioeconômicas até aquelas fragilidades de ordem mental, psicológica, moral, emocional, espiritual. Jesus se identifica com os menores, dentre os quais estamos nós também com nossas fraquezas e necessidades (cf. Mt 25, 32ss).

Colocando o menino no centro das atenções, no meio de seus discípulos, naquele instante Jesus estava acolhendo as suas misérias, suas manias de grandeza, suas disputas, estava acolhendo-os, sendo entregue a eles, colocando-se nas mãos deles, amando-os.

- “... e disse-lhes: Todo o que recebe um destes meninos em meu nome, a mim é que recebe; e todo o que recebe a mim, não me recebe, mas aquele que me enviou” (v. 37). Acolhendo o menino, o último, acolhe-se o Pai eterno. Mistério profundo! Através do acolhimento ao menor dos irmãos, acolhendo e tirando a dor do irmão, entramos, adentramos no mistério do Filho e no mistério do Pai: podemos conhecer bem de perto quem é de verdade Jesus e quem é o Pai. Como verdadeiro homem, Jesus também fez esse caminho. Entregando-se nas mãos dos homens, Ele termina por se “entregar” nas mãos do Pai (“Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”). Não há outra alternativa: jamais nos entregaremos ao Pai rejeitando as mãos dos homens.

Autor:
Frei João Santiago, OFMCap
No items found.
Comente