O Espírito Santo e Sua Santa Operação
O Espírito Santo é a essência do fundamento cristão, isto é, o princípio fundante da unidade eclesial, da comunhão entre os diferentes. Desse modo, ao nos aproximarmos da solenidade de Pentecostes, a Liturgia da Palavra reiteradamente nos leva a escutar do Senhor que a sua Presença permanecerá junto à Igreja mediante o envio do Paráclito, da Presença que revigora, anima, defende, consola e torna presente e atuante, na comunidade, os mistérios salvíficos. Ao celebrar essa solenidade, estamos entrando no núcleo de força da Igreja, pois se não houvesse a atuação do Espírito no tempo e na história não se sustentaria o Corpo Místico de Cristo, a sua Presença constante, logo, seríamos vítimas da orfandade, não seríamos as testemunhas da semente de eternidade no tempo. Por isso, podemos dizer que a Igreja, a comunidade dos discípulos do Senhor, permanece una e santa porque revive continuamente a efusão do Espírito, o rejuvenescimento de sua missão salvífica.
Francisco de Assis, nosso irmão, era um homem do Espírito, feito oração. Boaventura de Bagnoregio o apresenta todo configurado a Cristo, por exemplo, no capítulo oitavo da Legenda Maior(Francisco como Alter Christus), bem como no segundo capítulo da Legenda Menor (Francisco envolto no Espírito de Cristo). Do mesmo modo, tanto nas demais hagiografias de Francisco quanto no Testamento e na Regra, encontramos acentralidade do carisma no seguimento de Jesus Cristo mediante a forma de vida evangélica, o que só é possível, é claro, sob algumas condições basilares: a inspiração divina, juntamente com a disponibilidade da vontade, e o compromisso no seguimento a Cristo expresso na comunhão eclesial.
Se voltarmos o nosso olhar, mesmo que rapidamente, para a corrente franciscana de pensamento que se desenvolverá, sobretudo, ao longo do século XIV, perceberemos que a vontade é defendida como a mais importante potencialidade da alma. O desenvolvimento desse argumento nos remete a um traço singular do franciscanismo: a importância da individuação do humano diante do absoluto de Deus, ou seja, a disposição livre e pessoal como o meio de ação da inspiração divina. Autores, por exemplo, como Boaventura e Duns Scotus, apesar de seus diferentes pontos de reflexão, concordavam ao defender acentralidade da vontade na dignificação do humano e como ponto de contato com o divino; a inteligência, por sua vez, somente poderia alcançar os primeiros princípios por meio da das luzes do Espírito. Como frades menores, esses pensadores interpretaram a experiência de Francisco de Assis e a transformaram em uma linha de reflexão acerca da dignidade humana e de sua relação com a inspiração divina, realçando sempre o concurso da graça espiritual e a disponibilidade da vontade.
Como estamos celebrando, dentro das festividades do Centenário Franciscano, neste ano de 2023, os oitocentos anos de aprovação da Regra dos Frades Menores (29 de novembro de 1223, mediante a bula Solet Annuere de Honório III; por isso, também chamada Regra Bulada), poderíamos, embora brevemente, direcionarmos a nossa atenção para o movimento do Espírito que a torna, mesmo depois de oito séculos, atual e necessária para a continuidade do modo de vida evangélico adotado por Francisco e a primeira fraternidade. Partindo desse ponto, poderemos compreender que Francisco é um homem todo imerso no Espírito Santo e que a família franciscana, em comunhão com a Igreja, é chamada a recordar o que o próprio Senhor afirmou e prometeu: O Espírito da Verdade permanece com a comunidade dos que amam o Senhor, ensinando todas as coisas e fazendo memória, tornando presente o Mistério de Amor que em profusão nos foi doado pelo Pai, em Cristo, por meio do Espírito(Jo 14, 15-26).
O processo de construção da regra é posterior à intuição de Francisco e à acolhida dos primeiros irmãos, ou seja, somente com a chegada dos primeiros companheiros é que o jovem Francisco se viu diante da necessidade de escrever “para si e seus irmãos, presentes e futuros, com simplicidade e breves palavras, uma norma de vida ou Regra, composta de expressões do Evangelho, a cuja perfeita observância aspirava de contínuo” (ICel XIII, 32). Por volta de 1209/1210, Francisco e os seus primeiros irmãos se dirigiram à Roma e pediram à Igreja uma primeira aprovação do seu estilo devida. Os Escritos estão cheios de narrativas de como poderia ter ocorrido aqueles primeiros passos, porém, o mais importante é que a primeira fraternidade logrou de Inocêncio III uma aprovação oral ao que, posteriormente, ficou conhecida como Proto-regra. Como é sabido, não temos o documento propriamente escrito, no entanto, é muito possível que ele tenha sido desenvolvimento gradualmente até chegar na estrutura da denominada Regra não Bulada (1221), que, após um processo de reestruturação – cuja exposição não é o objeto desta reflexão, podendo ser amplamente encontrado na bibliografia de diversos estudiosos do franciscanismo –, chegou ao texto que conhecemos como Regra Bulada (1223).
Faz-se necessário que esclareçamos uma coisa: uma só é a Regra de Francisco de Assis, a qual possui um caminho de construção que, por sua vez, assinala uma tensão entre as primeiras intuições de Francisco e as demandas jurídicas e concretas de uma fraternidade que era cada vez mais numerosa. Dito isso, podemos afirmar que a Regra Bulada não é tão somente um documento jurídico e normativo, pois essa é somente a superfície sobre a qual não podemos nos deter se quisermos imergir na sua riqueza espiritual. Para avançarmos em direção a águas mais profundas, propomos algumas provocações. Partimos do verso 14 do Testamento: “E depois que o Senhor me deu frades, ninguém me ensinava o que deveria fazer, mas o próprio Altíssimo me revelou (sed ipse Altissimus revelavit mihi) que deveria viver segundo a forma do santo Evangelho”.
Em seu testamento, escrito meses antes de sua morte em 1226, Francisco faz uma rememoração, seguida de exortações e admoestações, deixando para os seus irmãos, em breves palavras, os primeiros passos rumo a “audiencia” do que lhe inspirava o Espírito, seguido da disponibilidade da escuta atenta, “obaudiencia”, e do seu compromisso em viver segundo o que brotava de seu coração. Quando a palavra não apenas é ouvida, mas vivenciada na concretude do processo de conversão, torna-se presente o “vinde e vede” (Jo 1, 39). Cremos que foi isso que aconteceu com Francisco e os primeiros companheiros, e que ainda hoje ocorre no seio da família franciscana, bem como de toda a Igreja, basta que estejamos dispostos à obediência (no sentido de obaudiencia, disposição à escuta). Junto aos irmãos, formando comunidade, está o Senhor e nunca nos deixou.
Como no dia da ressurreição, pondo-se no meio dos apóstolos e manifestando a sua Presença viva e verdadeira (Jo 20, 19-23), e cinquenta dias depois, confirmando haver uma só linguagem, ada fraternidade reunida entorno do mistério da ressurreição, da Unidade no Espírito de Cristo (At 2), assim a Presença constante do Senhor manifesta-se na multiformidade de carismas, dentre os quais está a forma de vida dos irmãos menores revelada a Francisco. Por isso mesmo, em seu Testamento, encontramos “o Altíssimo mesmo me revelou”, ou seja, a forma de vida evangélica que está no centro do carisma franciscano é uma doação do Espírito que, na Igreja, opera deforma a nos configurar a Cristo, tornando-nos esposos, irmãos e mães do Senhor, como nos ensina Francisco na Segunda Carta aos fiéis (51-53):
E são esposos, irmãos e mães de nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 12,50). Somos esposos, quando pelo Espírito Santo une-se a alma fiel a Jesus Cristo. Somos certamente irmãos, quando fazemos a vontade de seu Pai, que está no céu (Mt12,50); mães, quando o levamos no coração e em nosso corpo (1Cor 6,20) pelo amor e a consciência pura e sincera; o damos à luz pela santa operação, que deve iluminar os outros com o exemplo (Mt 5, 16).
Desse modo, não havia outra maneira de iniciar a Regra, senão a partir do fundamental, isto é, o “Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” (RB 1), pois esta é a regra que se deve fazer vida na fraternidade. O que só é possível mediante a abertura ao Espírito que atualiza, isto é, rememora e ensina para atuar o mistério de Cristo, que, por sua vez, forma e manifesta-se na comunidade dos discípulos, a Igreja, a Unidade na diversidade. Em outras palavras, a regra dos Frades Menores é a forma de vida evangélica, cuja condição de possibilidade é a presença do Espírito Santo como mestre e guia no caminho em direção à perfeição no Senhor Jesus Cristo, em cujo nome, tem princípio e fim (incipit) a vida dos frades menores.
Como podemos notar, a invocação ao Espírito é continuamente presente na diversidade dos textos que compõem a bibliografia franciscana e, inclusive, com referência à celebração das primeiras reuniões gerais de toda a ordem, ou seja, aos Capítulos: “todos os frades sejam sempre obrigados a ter um ministro geral e servo da fraternidade(...) quando ele falecer, faça-se a eleição do sucessor pelos ministros provinciais e custódios no capítulo de Pentecostes” (RB 8). Ademais, Francisco, em sua intuição primeira, costumava afirmar: “Em Deus, não há acepção de pessoas, e o ministro geral da religião – que é o Espírito Santo – vem igual sobre o pobre e sobre o rico” (II Cel CXLV, 193), e complementa o hagiógrafo que Francisco até quis pôr estas palavras na Regra, mas esta já tinha recebido a aprovação de Roma.
Destarte, todos aqueles que se sentem chamados a vivenciar o carisma franciscano, na diversidade de suas manifestações, caso abracem completamente a profundidade desse modo de vida, severão impulsionados a desejar sobre todas as coisas “possuir o Espírito do Senhor e sua santa operação, orar sempre a ele de coração puro e ter humildade, paciência na perseguição e na enfermidade e amar os que nos perseguem e repreendem e acusam” (RB 10).
Esta é a suprema meta da forma devida do carisma franciscano: está envolto no Espírito Santo, deixar-se modelar por Ele, viver segundo seus influxos, dispor a vontade, o sentimento e a inteligência a serviço de sua santa operação. Movidos pelo Espírito Santo a confessar, sobretudo com a vida, que Jesus é o Senhor, “no qual vivemos, nos movemos e somos” (At 17, 28) e que o seu Reino é “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14, 17), poderemos atualizar a presença de Cristo, pobre, humilde, misericordioso e servo, em nosso século, assim como Francisco de Assiso fez há oitocentos anos. Portanto, não há como ser diferente: o Espírito Santo e sua santa operação é a jovialidade do carisma franciscano na Igreja e no mundo.
Em Francisco e Clara,
Paz e Bem!