O Natal para Francisco de Assis e Francisco de Roma
Preâmbulo
“O sinal admirável do Presépio, muito amado pelo povo cristão, não cessa de suscitar maravilha e enlevo. Representar o acontecimento da natividade de Jesus equivale a anunciar, com simplicidade e alegria, o mistério da encarnação do Filho de Deus (AS 1).” Assim começa a Carta do Papa Francisco sobre o significado e valor do Presépio, publicada no primeiro Domingo do Advento do ano de 2019, sétimo ano de seu pontificado, chamada Admirabile Signum (AS), a qual contém dez pontos de reflexão. Além de trazer à mente e ao coração uma reflexão sobre o Nascimento do Salvador e a importância de viver a proposta do Evangelho, o Papa Francisco deseja:
Apoiar a tradição bonita das nossas famílias prepararem o Presépio, nos dias que antecedem o Natal, e também o costume de o armarem nos lugares de trabalho, nas escolas, nos hospitais, nos estabelecimentos prisionais, nas praças… Trata-se verdadeiramente dum exercício de imaginação criativa, que recorre aos mais variados materiais para produzir, em miniatura, obras-primas de beleza. Aprende-se em criança, quando o pai e a mãe, juntamente com os avós, transmitem este gracioso costume, que encerra uma rica espiritualidade popular. Almejo que esta prática nunca desapareça; mais, espero que a mesma, onde porventura tenha caído em desuso, se possa redescobrir e revitalizar (AS 1).
Em sintonia com as palavras do Papa Francisco, e seguindo sua perspectiva, traremos três pontos de reflexão acerca do Natal na ótica de Francisco de Assise Francisco de Roma. O primeiro ponto versará sobre a Carta Admirabile Signum de Papa Francisco. O segundo apresentará as narrativas da representação do Natal nas Fontes Franciscanas e, por fim, o terceiro proporá uma leitura teológica do Natal do Senhor.
1. A Carta Admirabile Signum do Papa Francisco
Ao ler as primeiras linhas da Carta Admirabile Signum [1]do Sumo Pontífice, ele faz recordar a origem do Presépio, a qual “deve-se, antes de mais nada, a alguns pormenores do nascimento de Jesus em Belém, referidos no Evangelho” (AS 2). No Evangelho de Lucas 2,7, Jesus é colocado numa manjedoura, “que, em latim, se diz praesepium, donde vem a nossa palavra presépio”(AS 2).
Após evocar as origens bíblicas, o Papa remonta às origens Franciscanas da devoção ao presépio, afirmando que “com a simplicidade daquele sinal, São Francisco realizou uma grande obra de evangelização” (AS 3) e que “Greccio torna-se um refúgio para a alma que se esconde na rocha, deixando-se envolver pelo silêncio” (AS 3). O presépio manifesta a ternura de Deus: “em Jesus, o Pai deu-nos um irmão, que vem procurar-nos quando estamos desorientados e perdemos o rumo, e um amigo fiel, que está sempre ao nosso lado; deu-nos o seu Filho, que nos perdoa e levanta do pecado.”(AS 3).
Segundo o Papa, um dos grandes sinais do presépio é iluminar a noite que envolve nossa vida. Para ele, representamos o céu estrelado na escuridão e no silêncio da noite. Fazemo-lo não apenas para ser fiéis às narrações do Evangelho, mas também pelo significado que possui. Pensemos nas vezes sem conta que a noite envolve a nossa vida. Pois bem, mesmo em tais momentos, Deus não nos deixa sozinhos, mas faz-Se presente para dar resposta às questões decisivas sobre o sentido da nossa existência: Quem sou eu? Donde venho? Por que nasci neste tempo? Por que amo? Por que sofro? Por que hei de morrer? Foi para dar uma resposta a estas questões que Deus Se fez homem. A sua proximidade traz luz onde há escuridão, e ilumina a quantos atravessam as trevas do sofrimento (Cf. Lc 1,79). (AS 4).
Merecem destaque “os anjos e a estrela-cometa são o sinal de que também nós somos chamados a pôr-nos a caminho para ir até à gruta adorar o Senhor” (AS 5), os pastores que “tornam-se as primeiras testemunhas do essencial, isto é, da salvação que nos é oferecida” (AS 5). Outras figuras, as quais se colocam no Presépio também merecerem esse destaque, “em primeiro lugar, as de mendigos e pessoas que não conhecem outra abundância a não ser a do coração.”(AS 6). Assim, “do Presépio, com meiga força, Jesus proclama o apelo à partilha com os últimos como estrada para um mundo mais humano e fraterno, onde ninguém seja excluído e marginalizado.” (AS6).
Salta aos olhos, ao adentrar no Presépio, as figuras de Maria e de José. “Maria é uma mãe que contempla o seu Menino e O mostra a quantos vêm visitá-Lo. A sua figura faz pensar no grande mistério que envolveu esta jovem, quando Deus bateu à porta do seu coração imaculado. (...) N’Ela, vemos a Mãe de Deus que não guarda o seu Filho só para Si mesma, mas pede a todos que obedeçam à palavra d’Ele e aponham em prática (cf. Jo 2,5).” (AS 7). Ao lado de Maria, está José, o qual “desempenha um papel muito importante na vida de Jesus e Maria. É o guardião que nunca se cansa de proteger a sua família (...) e homem justo que era, sempre se entregou à vontade de Deus e pô-la em prática. (AS 7).
No coração do Presépio, temos a figura do Menino Jesus. Nele, “se nos apresenta Deus, num menino, para fazer-Se acolher nos nossos braços. Naquela fraqueza e fragilidade, esconde o seu poder que tudo cria e transforma. Parece impossível, mas é assim: em Jesus, Deus foi criança e, nesta condição, quis revelar a grandeza do seu amor, que se manifesta num sorriso e nas suas mãos estendidas para quem quer que seja.” (AS 8).
O Sumo Pontífice lembra que “ao fixarmos esta cena no Presépio, somos chamados a refletir sobre a responsabilidade que cada cristão tem de ser evangelizador. Cada um de nós torna-se portador da Boa-Nova para as pessoas que encontra, testemunhando a alegria de ter conhecido Jesus e o seu amor; e fá-lo com ações concretas de misericórdia.” (AS 9). O Presépio, “faz parte do suave e exigente processo de transmissão da fé.” (AS 10).
Por fim, segundo Papa Francisco, “não é importante a forma como se arma o Presépio; pode ser sempre igual ou modifica-la cada ano. O que conta, é que fale à nossa vida. Por todo o lado e na forma que for, o Presépio narra o amor de Deus, o Deus que Se fez menino para nos dizer quão próximo está de cada ser humano, independentemente da condição em que este se encontre. (...) Na escola de São Francisco, abramos o coração a esta graça simples, deixemos que do encanto nasça uma prece humilde: o nosso «obrigado» a Deus, que tudo quis partilhar conosco para nunca nos deixar sozinhos.” (AS 10).
2. As narrativas do Natal nas Fontes Franciscanas
São Francisco amava o Natal mais que todas as outras festas (Memorial do desejo da alma 199). Papa Francisco, nos conduziu a Greccio, onde em 1223, Francisco de Assis realizou a representação do Presépio. O Papa recorre à passagem da Vita Prima, de Tomás de Celano (números 84 a 87).
Quinze dias antes do Natal, Francisco chamou João, um homem daquela terra, para lhe pedir que o ajudasse a concretizar um desejo: «Quero representar o Menino nascido em Belém, para de algum modo ver com os olhos do corpo os incómodos que Ele padeceu pela falta das coisas necessárias a um recém-nascido, tendo sido reclinado na palha duma manjedoura, entre o boi e o burro». Mal acabara de o ouvir, o fiel amigo foi preparar, no lugar designado, tudo o que era necessário segundo o desejo do Santo. No dia 25de dezembro, chegaram a Greccio muitos frades, vindos de vários lados, e também homens e mulheres das casas da região, trazendo flores e tochas para iluminar aquela noite santa. Francisco, ao chegar, encontrou a manjedoura com palha, o boi e o burro. À vista da representação do Natal, as pessoas lá reunidas manifestaram uma alegria indescritível, como nunca tinham sentido antes. Depois o sacerdote celebrou solenemente a Eucaristia sobre a manjedoura, mostrando também deste modo a ligação que existe entre a Encarnação do Filho de Deus e a Eucaristia. Em Greccio, naquela ocasião, não havia figuras; o Presépio foi formado e vivido pelos que estavam presentes. Assim nasce a nossa tradição: todos à volta da gruta e repletos de alegria, sem qualquer distância entre o acontecimento que se realiza e as pessoas que participam no mistério. O primeiro biógrafo de São Francisco, Tomás de Celano, lembra que naquela noite, à simples e comovente representação se veio juntar o dom duma visão maravilhosa: um dos presentes viu que jazia na manjedoura o próprio Menino Jesus. Daquele Presépio do Natal de 1223, «todos voltaram para suas casas cheios de inefável alegria». (AS 2).
Além do texto trazido pelo Papa Francisco, as narrativas da representação do Presépio [2] são abundantes nas Fontes Franciscanas e perpassam as principais Legendas da Vida de Francisco. Da obra de Tomás de Celano (1190-1260) temos relatos nas três Legendas principais, são elas, Vita Prima– Vida Primeira de São Francisco (1228-1229), Vita Brevior [3] – Vida de nosso bem-aventurado Pai Francisco – (1232-1239) e o Memorial do desejo da alma [antiga Vita Secunda] (1246-1247). Também há relato na obra de Boaventura de Bagnoregio (1221-1274), em sua Legenda Maior (1263-1266).[4]
O primeiro relato, da Vita Prima (84-87),foi trazido em síntese pelo Papa Francisco na Admirabile Signum (2). Traremos, os demais relatos a seguir, paraque possamos conhece-los e nos deixar sensibilizar pela beleza de suas narrativas.
1. O segundo deles é retirado da Vita Brevior – A Vidade nosso bem-aventurado Pai Francisco (67-69):
Aconteceu então, que, durante uma celebração de Natal em Greccio para representar a infância do Senhor desde seu nascimento, ele fez uma coisa muito digna de memória. Nesta noite em que Cristo nasceu, ele preparou um presépio, colocou feno e, perto dela, o boi e o burro. Os frades foram convocados de inúmeros lugares para celebrar as vigílias da festa. As pessoas afluíram de todos os lados para ver o novo mistério e, pegando tochas e velas, fizeram a noite resplandecer. Os frades cantaram louvores dedicados ao Senhor e as antigas notícias de Belém foram renovadas em Greccio com um rito novo. O santo de Deus colocou-se diante do presépio, com espírito dirigido ao céu, inundado de uma inefável alegria. Os ritos da missa foram celebrados no presépio e o padre gozou de uma nova satisfação.
O santo de Deus foi vestido com os ornamentos do levita, pois ele era levita, e cantou o santo Evangelho com uma voz sonora. Ele proferiu palavras doces como o meu sobre o nascimento do pobre Rei e sobre apequena cidade de Belém. Desejando chamar Jesus, em razão do amor extremo que ardia dentro dele, chamou balbuciando “a criança de Belém”. Ali multiplicaram-se os dons do Todo-Poderoso e uma admirável visão foi percebida por um homem de virtude. Ele via naquela manjedoura uma criança deitada sem vida; o santo de Deus aproximava-se e se a acordava rapidamente como se atirasse do torpor do sono. De modo apropriado, para aquele que repassa em espírito a infância de Cristo, a criança recém-nascida apareceu, pois por seu servidor fora chamada à memória de muitos, em corações que antes relegavam ao esquecimento.
Por fim, uma vez terminada a celebração e todos tendo voltado para casa, o feno do presépio foi conservado para que ali os animais doentes fossem curados, e para que mesmo mulheres e homens, através da ação da graça divina, fossem curados de seus males. Mais ainda, o lugar do presépio foi consagrado como templo do Senhor e um altar foi dedicado, com uma Igreja, à honra do bem-aventurado pai Francisco.
2. O terceiro é relativo ao Memorial do desejo da alma[antiga Vita Secunda] (199-200):
Mais do que nenhuma outra festividade, celebrava com inefável alegria o nascimento do Menino Jesus e chamava festa das festas ao dia em que Deus, feito menino, se amamentava como todos os filhos dos homens. Beijava mentalmente, com esfomeada avidez, as imagens do Menino que o espírito lhe construía, e, d’Ele entranhadamente compadecido, balbuciava palavras de ternura, à maneira das crianças. E o seu nome era para ele como um favo de mel na boca[5].Um dia, estando os irmãos a discutir se poderia ou não comer carne, dado que o Natal, esse ano, caía à sexta-feira, respondeu Francisco a frei Morico: «Irmão, é um pecado chamar dia de Vénus[6] ao dia em que nasceu por nós o Menino. Desejaria – acrescentou – que em semelhante dia até as paredes comessem carne; mas, como não é possível, sejam ao menos untadas com gordura».
Queria que nesse dia os ricos dessem comida abundante aos pobres e famintos, e que os bois e jumentos tivessem mais penso que o habitual. «Se eu falasse com o Imperador – dizia –, pedir-lhe-ia que promulgasse um édito geral para que todos os que pudessem fossem obrigados a espalhar trigo e outros cereais pelos caminhos, para que, em tão grande solenidade, as avezinhas, sobretudo as irmãs cotovias, comessem com abundância». Não conseguia reprimiras lágrimas, ao pensar na extrema pobreza que padeceu nesse dia a Virgem Senhora pobrezinha[7].Uma vez, estando sentado à mesa a comer, e tendo um irmão recordado a pobreza da bem-aventurada Virgem e de seu Filho, imediatamente se levantou a chorar e a soluçar, e, com o rosto banhado em lágrimas, comeu o resto do pão sobre a terra nua. Por isso chamava à pobreza virtude real, pois refulge com tanto esplendor no Rei como na Rainha. E como os irmãos lhe tivessem perguntado um dia, em Capítulo, que virtude tornaria alguém mais amigo de Cristo, respondeu como quem confia um segredo do coração: «Sabei, irmãos, que a pobreza é um caminho privilegiado para a salvação. As suas vantagens são inumeráveis, mas muito poucos as conhecem.
3. O quarto é da obra de Boaventura de Bagnoregio e faz da Legenda Maior (10,7):
Três anos antes da morte resolveu celebrar com a maior solenidade possível a festa do Nascimento do Menino Jesus, ao pé da povoação de Greccio, a fim de estimular a devoção daquela gente. Mas para que um tal projeto não fosse tido por revolucionário, pediu para isso licença ao Sumo Pontífice, que lha concedeu[8].Mandou preparar uma manjedoura com palha, e trazer um boi e um burrito. Convocaram-se muitos Irmãos; vieram inúmeras pessoas; pela floresta ressoaram cânticos alegres… Essa noite venerável revestiu-se de esplendor e solenidade, iluminada por uma infinidade de tochas a arder e ao som de cânticos harmoniosos. O homem de Deus estava de pé diante do presépio, cheio de piedade, banhado em lágrimas e irradiante de alegria. O altar dessa missa foi a manjedoura. Francisco, que era diácono, fez a proclamação do Evangelho. Em seguida dirigiu a palavra à assembleia, contando o nascimento do pobre Rei, a quem chamou, com ternura e devoção, o Menino de Belém. O Senhor João de Greccio, cavaleiro muito virtuoso e digno de toda a confiança, que abandonara a carreira das armas por amor de Cristo e dedicava uma profunda amizade ao homem de Deus, afirmou que tinha visto um menino encantador a dormir na manjedoura, e que pareceu acordar quando S. Francisco fez menção de pegar nele nos braços. É crível que se tenha dado esta aparição: há o testemunho não só da santidade do piedoso militar, como a veracidade do próprio acontecimento e a confirmação que lhe deram outros milagres ocorridos depois: o exemplo de Francisco correu mundo e ainda hoje consegue excitar à fé de Cristo muitos corações adormecidos; a palha dessa manjedoura, conservada pelo povo, serviu de remédio miraculoso para animais doentes e de proteção para afastar muitas pestes. Assim glorificava Deus o seu servo, e mostrava, com milagres indesmentíveis o poder da sua oração e da sua santidade.
3. Leitura teológica do Natal do Senhor
“O Verbo se fez carne” (Jo 1,1-14). Esta passagem do Evangelho de São João traz o núcleo central da fé Cristã, a Encarnação. O fato da Encarnação por motivo de amor, revela a dignidade da natureza e da carne humana. Encarnação e mandamento do amor são realidades inseparáveis. E o mesmo evangelista evoca essa realidade em sua Carta, onde diz “quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor (1 Jo 4,8). Na Carta Admirabile Signum, Papa Francisco, traz à lembrança que:
No Presépio, os pobres e os simples lembram-nos que Deus Se faz homem para aqueles que mais sentem a necessidade do seu amor e pedem a sua proximidade. Jesus, «manso e humilde de coração» (Mt 11, 29), nasceu pobre, levou uma vida simples, para nos ensinar a identificar e a viver do essencial. Do Presépio surge, clara, a mensagem de que não podemos deixar-nos iludir pela riqueza e por tantas propostas efémeras de felicidade. Como pano de fundo, aparece o palácio de Herodes, fechado, surdo ao jubiloso anúncio. Nascendo no Presépio, o próprio Deus dá início à única verdadeira revolução que dá esperança e dignidade aos deserdados, aos marginalizados: a revolução do amor, a revolução da ternura. (AS6).
Captando a importância desse fato para a fé cristã, Francisco de Assis, com sua sutileza e profundidade de fé, quis tornar essa realidade explícita aos olhos de seus contemporâneos através da representação do nascimento do Menino-Deus, conforme lemos nas narrativas. O Poverello de Assis não renegou os aspectos ontológicos da Encarnação, tais como natureza, pessoa, união hipostática, mas quis integrar essa visão ao existencial e à prática religiosa e devocional da fé cristã de sua época, colocando entre parênteses as formulações especulativas e trazendo o mistério ao alcance dos olhos.
Francisco de Assis nos ajuda a contemplar o mistério da Encarnação, como afirma Frei Raniero Cantalamessa, “não importa, de fato, apenas saber que Deus se fez homem; importa também saber que tipo de homem Ele se fez.”[9] Na Sagrada Escritura, João e Paulo apresentam visões diferentes acerca da Encarnação, e ainda assim elas se complementam. Para João, “o Verbo, que era Deus, se fez carne” (Cf. Jo 1,1-14). Para Paulo, “Cristo, sendo de natureza divina, assumiu a forma de servo e humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte” (Cf. Fl 2,5s).
Nesta perspectiva, para João, o Verbo, sendo Deus, se fez homem, para Paulo, o Cristo, sendo rico, se fez pobre (Cf. 2 Cor 8,9). Francisco, acreditando na realidade ontológica da humanidade de Cristo, ao modo paulino, insiste na humildade e na pobreza, do filho de Deus, feito homem, no seio de Maria, para Francisco, a Poverella. Francisco de Assis, “devolveu dessa forma “carne e sangue” aos mistérios do cristianismo, muitas vezes “desencarnados”.[10]
Descortina-se diante de nós aqui, o fato e o modo da Encarnação, os quais Francisco de Assis captou muitíssimo bem. Seguindo a intuição de Frei Raniero Cantalamessa, “se, pelo fato da Encarnação, o Verbo, de certa forma, assumiu cada homem, como diziam alguns Padres da Igreja, pelo modo como a Encarnação se realizou, ele assumiu, de forma especial, o pobre, o humilde, o sofredor, a ponto de identificar-se com eles.”[11]
Francisco, com sua consciência e sensibilidade agudíssimas, percebeu essa realidade, mesmo antes da representação do Natal em Greccio, quando abraçou e beijou o leproso, do qual antes só tinha horror. Assim, “não acolhe plenamente a Cristo quem não está disposto a acolher o pobre com quem Cristo se identificou. (...) Os pobres são os pés descalços que Cristo ainda mantém nessa terra.”[12]
O Presépio é um convite a «sentir», a «tocar» a pobreza que escolheu, para Si mesmo, o Filho de Deus na sua encarnação, tornando-se assim, implicitamente, um apelo para O seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento, que parte da manjedoura de Belém e leva até à Cruz, e um apelo ainda a encontrá-Lo e servi-Lo, com misericórdia, nos irmãos e irmãs mais necessitados (cf. Mt 25, 31-46). (AS 3).
São os mais humildes e os mais pobres que sabem acolher o acontecimento da Encarnação. A Deus, que vem ao nosso encontro no Menino Jesus, os pastores respondem, pondo-se a caminho rumo a Ele, para um encontro de amor e de grata admiração. É precisamente este encontro entre Deus e os seus filhos, graças a Jesus, que dá vida à nossa religião e constitui a sua beleza singular, que transparece de modo particular no Presépio. (AS 5).
Por fim, buscar defendera dignidade e os direitos de cada ser humano, imagem e semelhança de Deus, é compreender e viver o mistério da Encarnação no cotidiano da vida. Assim, “os primeiros cristãos, com seus costumes, ajudaram o Estado a mudar as leis; nós cristãos de hoje, não podemos fazer o contrário e pensar ser o Estado, com suas leis, que deve mudar o costume dos cristãos.”[13]
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Referências
CANTALAMESSA,Raniero. Apaixonado por Cristo, osegredo de Francisco de Assis. São Paulo: Edições Fons Sapientiae/Paulus,2019.
DALARUN,Jacques. A Vida Descoberta de Franciscode Assis. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2016.
DicionárioFranciscano. Verbete: Natal,natividade, Greccio, presépio. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993.
ENGLEBERT,Omar. Vida de São Francisco de Assis.Porto Alegre: EST Edições, 2004.
FONTESFRANCISCANAS. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
FONTESFRANCISCANAS. Santo André, SP: Editora o Mensageiro de SantoAntônio, 2014.
[1] Disponível na íntegra em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco-lettera-ap_20191201_admirabile-signum.html#_ftnref4. Acesso em 14 de dezembro de 2019.
[2] Para uma leitura maisatenta, conferir: Dicionário Franciscano. Verbete: Natal, natividade, Greccio, presépio.Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993, p. 468-475; e ENGLEBERT, Omar. Vida de SãoFrancisco de Assis. Porto Alegre: EST Edições, 2004, p. 245-250;
[3]Manuscrito descoberto em 2015, original disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b10516082m/f2.image e documentário sobre omanuscrito, disponível em https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=l2oVzFGHUtw. Acessos em 14 dedezembro de 2019. O manuscrito foi publicado em língua portuguesa, conferir:DALARUN, Jacques. A Vida Descoberta de Francisco de Assis. Rio Grande do Sul:UFRGS, 2016.
[4] Conferir também: Vida de Francisco de Juliano de Espira 53-55, Compilação de Assis 14, 2-8 e o Segundo Espelho da Perfeição 114, 1ss.
[5] Tudo isto realizou perfeitamente o bem-aventurado Pai. Tendo tido a imagem e a forma de um serafim e persistindo em viver crucificado, mereceu remontar-se à altura dos espíritos celestes. Na verdade, jamais ele se desprendeu da cruz, pois nunca se subtraiu a fadigas e sofrimentos, a fim de poder realizar em si por seu intermédio a vontade do Senhor. Os irmãos que com ele viveram sabem muito bem como a toda a hora lhe aflorava aos lábios a recordação de Jesus e com que enlevo e ternura sobre Ele discorria. Da abundância do coração falava a boca, e a fonte de amor iluminado que por dentro o enchia transbordava fora em fervente cachão. Que intimidades as suas com Jesus! Trazia Jesus no coração, Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus presente sempre em todos os seus membros! Quantas vezes, estando à mesa, esquecia o alimento corporal quando ouvia o nome de Jesus, ou o mencionava, ou pensava nele, e, tal como se lê de um santo, «olhando não via e ouvindo não ouvia». Mais: indo ele pelo mundo, quantas vezes, meditando e cantando a Jesus, interrompia e esquecia a caminhada para convidar as criaturas todas a louvarem com ele o Criador! Este amor maravilhoso com que sempre soube albergar e manter no coração a Jesus, e Jesus crucificado, mereceu-lhe a glória suprema de ser assinalado com o distintivo de Cristo, Filho do Altíssimo que, em êxtase, ele contemplava na glória indizível e incompreensível, sentado à direita do Pai, com o Qual, na unidade do Espírito Santo, vive e reina, triunfa e impera, Deus eternamente glorioso, por todos os séculos. Amém. (Memorialdo desejo da alma 115).
[6] Venerisdies (venerdi, em italiano), dia consagrado a Vénus. Tal é, com efeito, o nome do quinto dia da semana segundo a etimologia pagã, em uso na maioria dos países ocidentais. Morico deveria empregar o termo eclesiástico ou litúrgico deferia sexta (sexta-feira).
[7] Literalmente: a querida Virgem pobrezinha. Para o Poverello, NossaSenhora era a Poverella. O que dá à sua devoção um colorido bem original.
[8] Os outros biógrafos não mencionam esta cautela de pedir autorização superior para a nova liturgia. Uma decretal de Inocêncio III datada de 1207 proibia os «luditheatrales».
[9] CANTALAMESSA, Raniero. Apaixonado por Cristo, o segredo de Francisco de Assis. São Paulo: Edições Fons Sapientiae/Paulus,2019, p. 81.
[10] Idem, p. 83.
[11] Idem, p. 85.
[12] Idem, p. 87.
[13] Idem, p. 93.