Capítulo 1
1 [Por isso declarou que raramente se devia dar preceitos por obediência; e que não se devia lançar logo no começo o dardo, que devia ser o extremo.
2 Dizia: "Não se deve pôr logo a mão na espada".
3 Mas achava que aquele que não se apressava a obedecer o preceito da obediência não temia a Deus nem respeitava o homem.
4 Não há nada mais verdadeiro do que essas coisas. Pois que é a autoridade para mandar em quem manda temerariamente se não uma espada na mão] de um furioso?
5 E que há de mais desesperado que um religioso que despreza a obediência?
Capítulo 2
1 São Francisco dizia: "Tempo virá em que esta Religião amada por Deus vai ser difamada pelos maus exemplos, a ponto de ficar com vergonha de sair em público.
2 Mas os que vierem nesse tempo para receber a ordem serão conduzidos unicamente pela ação do Espírito Santo e carne e sangue não lhes causarão mancha alguma: e serão verdadeiramente abençoados por Deus.
3 E mesmo que não houvesse neles obras meritórias, pelo resfriamento da caridade, que faz os santos agirem com fervor, sobrevirão para eles tentações imensas;
4 e os que nesse tempo se demonstrarem comprovados serão melhores do que seus predecessores.
5 Mas ai daqueles que, aplaudindo-se só pela aparência de comportamento religioso, vão amolecer no ócio e não vão resistir constantemente às tentações que são permitidas para a provação dos eleitos;
6 pois só os que forem provados receberão a coroa da vida: eles serão exercitados nesse meio tempo pela malícia dos réprobos.
Capítulo 3
1 Disse também: "Roguei ao Senhor que se dignasse mostrar-me quando sou seu servo e quando não sou.
2 Pois não quero ser outra coisa, dizia, senão um servo seu.
3 Mas então o próprio Senhor benigníssimo dignou-se responder-me: Saibas que és meu servo de verdade quando pensas, falas e pões em prática coisas santas.
4 Foi por isso que vos chamei, irmãos, pois quero ficar com vergonha diante de vós se alguma vez não fizer nenhuma dessas três coisas".
Capítulo 4
1 Um dia, quando o bem-aventurado Francisco estava doente de cama no palácio do bispado de Assis, um frade espiritual e santo homem disse-lhe, brincando e rindo:
2 ”Por quanto vendes todos os teus trapos ao Senhor? Muitos baldaquins e panos de seda vão ser colocados e vão cobrir esse teu corpo, que agora está vestido de saco”.
3 Pois nesse tempo São Francisco, por causa da doença, tinha um gorro de pele, que estava coberto de saco, como a sua roupa de saco.
4 O bem-aventurado Francisco respondeu – não ele mas o Espírito Santo por ele – dizendo com grande fervor de espírito e alegria: “Tu dizes a verdade, porque vai ser assim mesmo”.
Capítulo 5
1 Vendo o bem-aventurado Francisco que, enquanto estava naquele palácio, sua enfermidade se agravava cada dia mais, fez com que o levassem de maca para a igreja de Santa Maria da Porciúncula, pois não podia andar a cavalo pela gravidade de sua doença.
2 Quando os que o levavam passaram pela rua perto do hospital, disse-lhes que pusessem a maca no chão.
3 E como quase não podia enxergar por causa da longa e grande enfermidade dos olhos, mandou virar a maca, para ficar com o rosto voltado para a cidade de Assis.
4 Levantando-se um pouco em seu leito, abençoou a cidade de Assis dizendo: “Senhor, como creio que a cidade, no tempo antigo, foi lugar e morada de homens maus e iníquos, de má fama em todas as províncias,
5 também vejo, por tua abundante misericórdia que, no tempo que te foi agradável, manifestaste nela a multidão das tuas bondades, para que fosse lugar e morada de pessoas que te conhecessem e dessem glória ao teu nome, com o odor da boa vida, da doutrina e da boa fama para todo o povo cristão.
6 Por isso eu te rogo, Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias, que não consideres a nossa ingratidão mas te lembres sempre da tua abundante misericórdia, que demonstraste para com ela, para que seja sempre o lugar e morada de pessoas que te conheçam e glorifiquem teu nome bendito e glorioso pelos séculos dos séculos. Amém”.
7 E, tendo dito isso, foi levado para Santa Maria da Porciúncula.
Capítulo 6
1 O bem-aventurado Francisco, desde o tempo de sua conversão até o dia de sua morte sempre foi solícito, na saúde e na doença, por conhecer e seguir a vontade do Senhor.
Capítulo 7
1 Um dia um frade disse ao bem-aventurado Francisco: “Pai, tua vida e comportamento foram e são luz e espelho não só para teus frades mas para toda a Igreja de Deus, e o mesmo vai acontecer com tua morte;
2 pois, embora para os teus frades e para muitos outros tua morte seja uma grande dor e tristeza, para ti será a maior consolação e um gozo infinito,
3 porque passarás de muito trabalho para o maior descanso e de muitas dores e tentações para um gozo infinito, da tua maior pobreza, que sempre amaste e suportaste voluntariamente desde o começo de tua conversão até o dia de tua morte, para as maiores, verdadeiras e infinitas riquezas, da morte temporal para a vida sempiterna,
4 onde verás sempre face as face o Senhor teu Deus (cfr. Gn 32,30; 1Cor 13,12), que contemplaste neste século com tanto fervor, desejo e amor”.
5 Dito isso, falou-lhe claramente: “Pai, saibas na verdade que, se Deus não mandar do céu o seu remédio para o teu corpo, tua doença é incurável e deves viver pouco, como também os médicos já disseram.
6 Mas eu disse isso para confortar o teu espírito, para te alegrares sempre no Senhor interior e exteriormente, e principalmente para que teus frades e outros, que vêm te visitar te encontrem alegre no Senhor (cfr. Fp 4,4),
7 porque sabem e crêem que vais morrer logo, que para eles que estão vendo isso e para os outros que ouvirem depois de tua morte, fique a tua morte como lembrança, como foram para todos tua vida e comportamento”.
8 O bem-aventurado Francisco, mesmo sofrendo muito pelas enfermidades, louvou ao Senhor com grande fervor do espírito e alegria do corpo e da alma, e lhe disse:
9 “Então, se devo morrer logo, chamai-me Frei Ângelo e Frei Leão, para que me cantem sobre a irmã morte”.
10 Esses frades se apresentaram diante dele e cantaram com muitas lágrimas o Cântico de Frei Sol e das outras criaturas ao Senhor, que o próprio santo fizera em sua doença para louvar o Senhor e para consolar sua alma e a dos outros,
11 no qual canto colocou antes do último um verso sobre a irmã morte, a saber:
12 Louvado sejas meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal da qual nenhum homem vivo pode escapar.
13 Ai de quem morrer em pecado mortal.
14 Felizes os que ela encontrar em tuas santíssimas vontades, porque a morte segunda não lhes fará mal.
Capítulo 8
1 Um dia o bem-aventurado Francisco chamou seus companheiros: “Vós sabeis como dona Jacoba de Settesoli foi e é para mim e para nossa Religião muito fiel e devota;
2 por isso eu acho que, se a fizerdes saber meu estado, vai ter isso como uma grande graça e consolação;
3 mas de maneira especial fazei saber que vos mande fazenda para uma túnica de pano religioso, que tenha côr de cinza, e é como o pano feito pelos monges cistercienses nos países ultramontanos;
4 também mande daquela comida que fez para mim muitas vezes quando estive em Roma”.
5 A tal comida é chamada pelos romanos de “mortariolum” (mostaciolo), feita de amêndoas e açúcar ou mel e outras coisas.
6 Essa mulher espiritual era uma santa viúva dedicada a Deus, das mais nobres e ricas de toda Roma, que tinha recebido tamanha graça de Deus pelos méritos e pela pregação do bem-aventurado Francisco, que parecia uma outra Madalena, sempre cheia de lágrimas e de devoção por amor de Deus.
7 Tendo escrito a carta, como dissera o santo pai, um frade estava procurando encontrar um frade que levasse a carta, e de repente bateram à porta;
8 e quando um frade abriu a porta, viu dona Jacoba, que viera depressa de Roma para visitar o bem-aventurado Francisco,
9 e imediatamente o frade foi anunciar ao bem-aventurado Francisco, com a maior alegria, como dona Jacoba com seu filho e muitos outros viera para vistá-lo,
10 e disse: “Que fazemos, pai? Deixamos que entre e venha a ti”?
11 Pois por vontade do bem-aventurado Francisco tinha sido estabelecido naquele lugar, no tempo antigo, que nenhuma mulher devia entrar no recinto, pela honestidade e devoção daquele lugar.
12 E o bem-aventurado Francisco disse: “Não devemos observar esse estatuto com essa senhora, que foi trazida até aqui lá de longe por tão grande fé e devoção”.
13 E assim ela entrou onde estava o bem-aventurado Francisco, derramando diante dele muitas lágrimas.
14 E foi admirável que ela trouxe consigo o pano mortuário, isto é, de côr cinzenta, para a túnica, e tudo que estava escrito na carta que era para mandar.
15 Os frades ficaram muito admirados com isso, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco.
16 A referida dona Jacoba até disse aos frades: “Irmãos, foi-me dito em espírito, quando estava rezando: Vá visitar teu pai, o bem-aventurado Francisco, depressa, sem tardar, porque se demorares muito não vais encontrá-lo vivo.
17 Além disso, levarás tal pano para sua túnica e tais coisas, para que lhes faças uma comida; do mesmo jeito, leve também bastante cera para as velas e também incenso”.
18 O bem-aventurado Francisco não tinha mandado falar de incenso na carta;
19 mas o Senhor quis inspirar aquela senhora para mercê e consolação de sua alma e para que nós conheçamos melhor como foi grande a santidade deste santo, que o Pai celeste quis honrar o pobre com tanta honra nos dias de sua morte.
20 Aquele que inspirou os reis para irem com presentes para honrar seu dileto Filho nos dias de seu nascimento e de sua pobreza, quis inspirar aquela senhora nobre, em lugar afastado, para ir com presentes para venerar e honrar o glorioso e santo corpo de seu santo servo,
21 que com tanto amor e fervor amou e seguiu a pobreza de seu dileto Filho na vida e na morte.
22 A senhora reparou um dia para o santo pai aquela comida que ele desejava comer; mas ele só comeu um pouquinho, porque a cada dia seu corpo estava definhando pela grave doença e estava ficando mais perto da morte.
23 Da mesma forma, mandou fazer muitas velas, para ficarem ardendo diante de seu santo corpo depois de sua migração; e, com o pano que ela tinha trazido, os frades fizeram-lhe uma túnica, com a qual foi sepultado.
24 E ele mesmo mandou que os frades costurassem saco sobre ela como sinal e exemplo da santíssima humildade e pobreza.
25 E foi feito como agradou a Deus, pois naquela semana em que veio dona Jacoba, o bem-aventurado Francisco migrou para o Senhor.
Capítulo 9
1 O bem-aventurado Francisco, desde o começo de sua conversão, com a colaboração do Senhor, como um sábio colocou o fundamento de si mesmo e de sua casa sobre a pedra firme (cfr. Mt 7,24), isto é, sobre a máxima humildade e pobreza do Filho de Deus, chamando-a de Religião dos Frades Menores.
2 Sobre a máxima humildade: por isso, desde o começo da Religião, depois que os frades começaram a se multiplicar, quis que os frades permanecessem nos hospitais dos leprosos para servi-los;
3 por isso, naquele tempo em que vinham para a Religião pobres e plebeus, entre outras coisas que lhes eram propostas dizia-se que tinham que servir aos leprosos e ficar em suas casas.
4 Sobre a máxima pobreza: como se diz na Regra, que os frades como forasteiros e peregrinos (cfr. 1Pd 2,11) fiquem nas casas em que moram, não queiram Ter nada embaixo do céu, a não ser a santa pobreza, pela qual são alimentados pelo Senhor neste século com alimentos corporais e com as virtudes, e no futuro vão conseguir a herança celeste.
5 Fundamentou a si mesmo sobre a máxima pobreza e humildade: porque, sendo um grande prelado na Igreja de Deus, quis e escolheu ser abjeto não só na Igreja de Deus mas também entre os seus irmãos.
Capítulo 10
1 Certa vez, quando estava pregando ao povo em Terni, na praça na frente do palácio do bispo, estava assistindo a esse sermão o bispo da cidade, homem discreto e espiritual.
2 Daí, quando acabou a pregação, o bispo levantou-se e, entre outras palavras de Deus, também disse:
3 “O Senhor, desde o começo, quando plantou e edificou a sua Igreja (cfr. Mt 16,18) sempre a fez brilhar por santos homens, que a cultivassem pela palavra e pelo exemplo.
4 Mas agora, nesta última hora (cfr. 1Jo 2,18) ilustrou-a com este homem pobrezinho, desprezado e iletrado — apontando com o dedo o bem-aventurado Francisco para todo o povo —e por causa disso tendes que amar e honrar o Senhor, e tomar cuidado com os pecados, pois não fez assim com todas as nações (cfr. Sl 149,20)”.
5 Quando acabou a pregação, descendo do lugar onde tinha falado, [o senhor] bispo e o bem-aventurado Francisco entraram na igreja do palácio episcopal;
6 então o bem-aventurado Francisco inclinou-se diante do senhor bispo e se prostrou aos seus pés (cfr. Mr 5,22) dizendo:
7 “Na verdade eu te digo, senhor bispo, que homem algum jamais me deu tanto honra neste século quanto me fizeste hoje, porque as outras pessoas dizem: esse homem é santo! atribuindo a glória e a santidade à criatura e não ao Criador.
8 Mas tu separaste o precioso do vil (cfr. Jr 15,19), como um homem discreto”.
9 Pois, muitas vezes, quando o bem-aventurado Francisco era honrado e diziam que ele era um santo homem, respondia essas palavras dizendo: “Ainda não estou seguro se não vou Ter filhos e filhas”.
10 E dizia: “Pois, em qualquer hora que Deus quisesse me tirar o seu tesouro, que me emprestou, que é que me sobraria a não ser o corpo e alma, que também os infiéis possuem?
11 Até devo crer que, se o Senhor desse a um ladrão e também a um homem infiel tantos bens quantos me deu, eles seriam mais fiéis ao Senhor”.
12 E disse: “Como num quadro do Senhor e da bem-aventurada Virgem honram-se Deus e a bem-aventurada Virgem, e nos lembramos de Deus e da bem-aventurada Virgem: a tábua e a pintura não se atribuem nada, porque são apenas tábua e pintura,
13 assim o servo de Deus é uma espécie de pintura, isto é, uma criatura de Deus, em que Deus é honrado por causa de um seu benefício,
14 mas ele não se deve arrogar nada, como a tábua e pintura, mas só a Deus se deve dar honra e glória (cfr. 1Tm 1,17); a si mesmo vergonha e tribulação, enquanto vive, porque sempre, enquanto vive, a carne é contrária aos benefícios de Deus.