Capítulo 101
1 Frei Ricério da Marca de Ancona, nobre de parentela mas ainda mais nobre de santidade, a quem o bem-aventurado Francisco amava com grande afeto, visitou certo dia no mesmo palácio ao bem-aventurado Francisco.
2 Entre outras palavras, em que comentou com o bem-aventurado Francisco sobre a situação da Religião a observância da Regra, também o interrogou sobre isto, dizendo:
3 “Conta-me, pai, que intenção tiveste desde o princípio quando começaste a ter irmãos, e a intenção que tens agora, e achas que vais ter até tua morte,
4 para que eu possa me certificar de tua intenção e vontade primeira e última, e saber se nós, irmãos clérigos, que temos tantos livros, podemos tê-los, embora digamos que são da Religião”.
5 Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: Irmãos, eu te digo que está foi e é minha primeira e última intenção e vontade, se os frades acreditassem em mim, que nenhum frade deveria ter senão a roupa, como a Regra nos concede, com o cíngulo e os calções”.
6 Por isso, houve uma vez em que disse: “A religião e a vida dos frades menores é um pequeno rebanho, que o Filho de Deus pediu a seu Pai celeste nesta última hora, dizendo:
7 Pai, gostaria que constituísses e me desses um povo novo e humilde neste última hora, que seja diferente na humildade e na pobreza de todos os outros que precederam e que ficasse contente de possuir só a mim.
8 E o Pai disse a seu dileto Filho: Filho, foi feito o que pediste”.
9 Por isso o bem-aventurado Francisco dizia que “por isso quis o Senhor que se chamassem frades menores, porque este é o povo que o Filho de deus pediu a seu Pai.
10 O próprio Filho de deus disse sobre eles no Evangelho: Não tenha medo, pequeno rebanho, porque aprouve a vosso Pai dar-vos o reino (Luc 12,32),
11 e continuando: O que fizestes a um dos menores destes meus irmãos, foi a mim que fizestes (cfr. Mat 25,40).
12 Porque ainda que se entenda que o Senhor disse isso a respeito de todos os pobres espirituais, na verdade predisse principalmente que a Religião dos frades menores viria a existir em sua Igreja”.
13 Por isso, como foi revelado ao bem-aventurado Francisco que a religião deveria chamar-se dos frades menores, assim fez escrever na primeira Regra, quando a levou para apresentar ao senhor papa Inocêncio III, e ele aprovou e concedeu a ele e depois anunciou a todos em um concílio.
14 Semelhantemente, também a saudação que o senhor lhe revelou que os frades deviam dizer, como mandou escrever em seu testamento dizendo:
15 “O Senhor me revelou que eu deveria dizer como saudação: O Senhor te dê a paz (cfr. Nm 6,26; 2Ts 3,16)“.
16 Por isso, no começo da religião, quando o bem-aventurado Francisco foi com um frade que foi um dos doze primeiros frades, esse frade saudava os homens e as mulheres pelos caminhos e os que estavam nos campos dizendo: O senhor vos dê a paz”.
17 E como as pessoas ainda não tinham ouvido tal saudação feita por nenhum religioso, ficavam muito admirados com isso.
18 Houve até algumas pessoas que lhes disseram, como se estivessem indignadas: “O que quer essa saudação?”.
19 De modo que aquele frade começou a ficar muito envergonhado por causa disso.
20 Daí disse ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, deixa dizer outra saudação”.
21 O bem-aventurado Francisco respondeu-lhe: “Deixa que eles falem, porque não entendem o que é de Deus.
22 Mas não fiques com vergonha, porque eu te digo, irmão, que nobres e príncipes deste século ainda vão demonstrar reverência a ti e aos outros frades por essa saudação”.
23 E disse o bem-aventurado Francisco: “Não é uma grande coisa que o Senhor tenha querido um pequeno povo entre todos os outros que precederam, que ficasse contente de possuir só a Ele, altíssimo e glorioso?”.
24 Mas se algum frade quiser dizer: por que o bem-aventurado Francisco, no seu tempo, não fez os frades observarem uma pobreza tão estrita como a que disse a Frei Ricério, e não mandou observá-la,
25 nós que estivemos com ele responderemos a isso, como ouvimos de sua boca, porque ele mesmo disse isso e muitas outras coisas aos frades e também mandou escrever na Regra muitas coisas que pedia ao Senhor com assídua oração e meditação, pelo bem da religião, afirmando que essa era certamente a vontade do Senhor.
26 Mas, depois que as mostrava a eles, pareciam-lhes graves e insuportáveis, ignorando então o que aconteceria na ordem depois da morte dele.
27 E como temia muito um escândalo em si e nos frades, não queria discutir com eles; mas condescendia, ainda que sem querer, à vontade deles, e se escusava diante de Deus.
28 Mas, para que não voltasse vazia para deus a palavra que punha em sua boca para a utilidade dos frades, queria cumpri-la em si, para conseguir por isso a mercê de Deus, e no fim aquietava-se nisso e consolava seu espírito.
Capítulo 102
1 Por isso, em certa ocasião, quando voltou do ultramar, um ministro conversava com ele sobre o capítulo da pobreza, querendo saber qual era sua vontade e compreensão sobre isso,
2 principalmente porque então estava escrito na Regra um capítulo de proibições do santo Evangelho, isto é: Nada levareis no caminho (Lc 9,3) etc.
3 O bem-aventurado Francisco respondeu: “Eu assim quero entender, que os frades não devam ter nada além da roupa, com a corda e os calções, como está na Regra, e os que tiverem necessidade, os calçados”.
4 Disse-lhe o ministro: “Que é que eu vou fazer, que tenho tantos livros, que valem mais do que cinqüenta libras?
5 Mas perguntou isso porque queria tê-los com a consciência sossegada, principalmente porque tinha remorsos por possuir tantos livros, sabendo que o bem-aventurado Francisco entendia tão estritamente o capítulo da pobreza.
6 Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Irmão, não posso nem devo ir contra minha consciência e a profissão do Santo Evangelho, que professamos”.
7 Ouvindo isso, o ministro ficou triste.
8 Mas o bem-aventurado Francisco, vendo-o tão perturbado, disse-lhe com fervor de espírito, como se falasse a todos os frades:
9 “Vós, frades menores, quereis ser vistos pelos homens e chamados de observadores do santo Evangelho, mas nas obras quereis ter bolsas (cfr. Jo 12,6)”.
10 Na verdade os ministros sabiam que, segundo a Regra dos frades, deveriam observar o santo Evangelho, mas fizeram remover da Regra aquele capítulo que dizia: Nada levareis no caminho (Lc 9,3) etc.;
11 julgando, portanto, que não estavam obrigados à perfeição do santo Evangelho.
12 Por isso o bem-aventurado Francisco, sabendo disso pelo Espírito Santo, disse diante de alguns frades: “Os irmãos ministros acham que podem enganar a Deus e a mim”.
13 E disse: “Até para que saibam e conheçam todos os frades que são obrigados a observar a perfeição do santo Evangelho, quero que seja escrito no começo e no fim da Regra que os frades sejam obrigados a observar o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo.
14 E para que os frades nunca tenham desculpas diante de Deus, quero mostrar-lhes com obras, e observar sempre, com a ajuda do Senhor, aquilo que o Senhor pôs em minha boca, que lhes anunciei e anuncio, para salvação e utilidade minha e dos frades”.
15 Por isso, desde o começo ele observou o santo Evangelho à letra, desde quando começou a ter frades até o dia de sua morte.
Capítulo 103
1 De maneira semelhante, numa ocasião ouve um irmão noviço que sabia ler o saltério, mas não bem; e como gostava de ler, pediu ao ministro geral licença para ter um saltério, e o ministro lhe concedeu.
2 Mas ele não o queria ter se não recebesse licença para isso do bem-aventurado Francisco, principalmente porque tinha ouvido dizer que o bem-aventurado Francisco não queria que seus frades fossem desejosos de ciência e de livros;
3 mas queria, e pregava aos frades, que se esforçassem por ter e imitar a pura e santa simplicidade, uma santa oração e a senhora pobreza, sobre as quais construíram os santos e os primeiros frades, e achava que esse era o caminho mais seguro para a salvação da alma.
4 Não que desprezasse ou olhasse com desagrado a santa ciência; até venerava com o maior afeto os que eram sábios na Religião e todos os sábios, como ele mesmo testemunhou em seu Testamento, dizendo:
5 “A todos os teólogos e aos que nos administram as palavras divinas devemos honrar e venerar como a quem nos administra o espírito e a vida”.
6 Mas, olhando para o futuro, conhecia pelo Espírito Santo e disse muitas vezes aos frades que muitos frades, com a desculpa de edificar os outros, abandonarão sua vocação, isto é a pura e santa simplicidade, a santa oração e nossa senhora pobreza.
7 E acontecerá com eles que, de onde acharam que depois se imbuiriam de devoção e acenderiam para o amor de Deus por causa da compreensão das Escrituras, justamente por isso ficarão interiormente frios e como que vazios.
8 E assim não poderão voltar à antiga vocação, principalmente porque perderam o tempo de viver segundo a sua vocação.
9 E temo que não lhes seja tirado o que parecia que possuíam, porque abandonaram sua vocação.
10 E dizia: “Há muitos que põem na ciência todo o seu esforço e toda a sua solicitude, dia e noite, deixando sua santa vocação e a devota oração.
11 E quando pregarem a alguns ou ao povo e virem ou ficarem sabendo que alguns ficaram edificados ou se converteram à penitência por causa disso, vão se inchar e orgulhar-se pelas obras e o lucro alheio.
12 Porque é o Senhor que edifica e converte aqueles que eles crêem que eles acham que se edificam com suas palavras e se convertem à penitência, com as orações dos frades santos, mesmo que eles não saibam disso, pois assim é a vontade de Deus, que não percebam disso para não se orgulharem.
13 Estes são os meus frades da távola redonda, que se escondem nos desertos e nos lugares afastados, para se dedicarem mais diligentemente à oração e à meditação, chorando os seus pecados e os dos outros, cuja santidade é conhecida por Deus, algumas vezes pelos frades, mas é ignorada pelos outros.
14 E quando suas almas forem apresentadas a Deus pelos anjos, então o Senhor vai mostrar-lhes o fruto e o resultado de seus trabalhos, isto é, muitas almas que forma salvas por suas orações, dizendo-lhes:
15 Filhos, olhem estas almas salvas por suas orações, e porque fostes fiéis no pouco, eu vos constituirei sobre muitas coisas (cfr. Mt 25,21)”.
16 Por isso, o bem-aventurado Francisco dizia sobre aquela passagem: Enquanto a estéril teve muitos filhos e a quem tinha muitos filhos ficou doente (cfr. 1Re 2,5), que a estéril era o bom religioso, que edifica a si mesmo e aos outros pelas santas orações e e virtudes.
17 Dizia muitas vezes essas palavras diante dos frades em suas conversas com eles, e principalmente no capítulo dos frades junto à igreja de Santa Maria da Porciúncula, diante dos ministros e dos outros frades.
18 Por isso formava para as obras todos os frades, tanto ministros como pregadores, dizendo-lhes que por causa da prelatura e do ofício e solicitude de pregar não deviam absolutamente deixar a santa e devota oração, ir pedir esmolas e trabalhar com suas mãos, como os outros frades, por causa do bom exemplo e do lucro de suas almas e das dos outros.
19 E dizia: “Os frades súditos ficam muito edificados quando seus ministros e pregadores se entregam de boa vontade à oração, e se prostram e se humilham”.
20 Por isso ele, como um fiel zelador de Cristo, enquanto foi sadio de corpo, fazia em si o que ensinava a seus frades.
21 Como aquele frade noviço, de que falamos acima, morava num eremitério, aconteceu que certo dia esteve lá o bem-aventurado Francisco.
22 Então aquele frade falou com ele, dizendo: “Pai, para mim seria uma grande consolação ter um saltério, mas, embora o ministro geral queira conceder-me isso, quero tê-lo de acordo com a tua consciência”.
23 Esta foi a resposta que o bem-aventurado Francisco lhe deu: “Carlos imperador, Rolando e Olivério, e todos os paladinos e robustos varões, que foram poderosos no combate, perseguindo os infiéis com muito suor e trabalho até a morte, conseguiram uma gloriosa e memorável vitória sobre eles, e no fim os próprios santos mártires morreram no combate pela fé em Cristo;
24 e sãos muitos os que só pela narração deles, do que eles fizeram, querem receber honra e louvor humano”.
25 E por isso escreveu qual o significado dessas palavras em suas Admoestações, dizendo: “Os santos fizeram as obras e nós, recitando-as e pregando-as, queremos receber por isso honra e glória”.
26 Como se dissesse: a ciência incha, mas a caridade edifica (cfr. 1Cor 8,1).
Capítulo 104
1 Outra vez, quando o bem-aventurado Francisco estava sentado junto ao fogo, esquentando-se, ele (o noviço) tornou a falar-lhe sobre o saltério.
2 E o bem-aventurado Francisco lhe disse; “Depois que tiveres o saltério, vais ficar com vontade e querer um breviário.
3 Depois que tiveres o breviário, te sentarás na poltrona como um grande prelado, dizendo ma teu irmão: Traz-me o breviário”.
4 E dizendo isso, com grande fervor de espírito pegou cinza com a mão e colocou-a em cima da cabeça, levando a mão em volta da cabeça, como alguém que se lava, dizendo para si mesmo: “Quero um breviário! Quero um breviário!”.
5 E falando assim muitas vezes, repetiu-o passando a mão pela cabeça.
6 Aquele frade ficou estupefato e envergonhado.
7 Depois, o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Irmão, eu também fui tentado a ter livros, de modo semelhante;
8 mas para conhecer a vontade de Deus a respeito disso, peguei um livro em que estavam escritos os Evangelhos do Senhor e orei ao Senhor para que se dignasse mostrar sua vontade a para mim a respeito dessas coisas na primeira vez que abrisse o livro.
9 Terminada a oração, na primeira vez que abri o livro encontrei aquela palavra do santo Evangelho: A vós foi dado conhecer os mistérios do reino de Deus; aos outros, porém, em parábolas (Lc 8,10; cfr. Mc 4,11)”.
10 E disse: “São tantos os que sobem à ciência que feliz será quem e fizer estéril por amor do Senhor Deus”.
Capítulo 105
1 Depois, passados vários meses, quando o bem-aventurado Francisco estava perto da igreja de Santa Maria da Porciúncula, perto de sua cela no caminho atrás da casa, e aquele frade falou-lhe de novo sobre o saltério.
2 O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Vá fazer como te disser o teu ministro”.
3 Ouvindo isso, o frade começou a voltar pelo caminho por onde tinha vindo.
4 Mas o bem-aventurado Francisco, permanecendo no caminho, começou a pensar no que tinha dito àquele frade,
5 e logo gritou para ele, dizendo: “Espera-me, irmão, espera!”.
6 e assim foi até junto dele, dizendo: “Volta comigo, irmão, e mostra-me o lugar em que te disse que fizesses do saltério o que te dissesse o teu ministro”.
7 Quando chegaram ao lugar onde tinha dito aquela palavra, o bem-aventurado Francisco inclinou-se diante do frade e, ficando de joelhos, disse:
8 “Minha culpa, irmão, minha culpa, porque quem quiser ser frade menor não deve ter senão as túnicas, como a regra lhe concede, o cordão e os calções e, os que forem obrigados por manifesta necessidade ou doença, os calçados”.
9 Por isso, a todos os frades que iam a ele para ter seu conselho a respeito disso, dava-lhes essa resposta”.
10 Por isso dizia: “Uma pessoa tem tanto conhecimento de ciência quanto põe em prática; e um religioso é tão bom orador quanto ele mesmo pratica”.
11 Como se dissesse: uma árvore boa não é conhecida senão pelo seu fruto (cfr. Mt 12,33; Lc 6,44)”.
Capítulo 106
1 Outra vez, quando o bem-aventurado Francisco estava no mesmo palácio, disse-lhe um dia um dos que eram seus companheiros aí: “Pai, perdoa-me, porque o que quero te dizer já foi considerado por diversas pessoas”.
2 E disse: “Tu sabes como outrora, pela graça de Deus, toda a religião vigorou na pureza da perfeição,
3 isto é, como todos os frades observavam com fervor e solicitude a santa pobreza em tudo, em edifícios pequenos e pobrezinhos, em utensílios pequenos e pobrezinhos, em livros pequenos e pobrezinhos, e em roupas pobrezinhas,
4 e como nessas coisas, também nas outras coisas exteriores tinham uma única vontade, solícitos por observar tudo que diz respeito a nossa profissão e vocação, e ao bom exemplo; e assim eram unânimes no amor a deus e ao próximo.
5 Agora, porém, faz pouco tempo, essa pureza e perfeição começou a variar de diversas formas, ainda que os frades digam muitas coisas e deem muitas desculpas, dizendo que por causa da multidão essas coisas não podem ser observadas pelos frades.
6 Muitos frades até acham que o povo fica mais edificado com essas coisas, e lhes parece mais honesto viver e comportar-se de acordo com essas coisas;
7 por isso têm como se fosse nada o caminho da simplicidade e daquela pobreza, que foram o início e o fundamento da nossa religião.
8 Por isso, considerando essas coisas, achamos que elas te desagradam; mas ficamos muito admirados, se te desagradam, porque suportas e não corriges”.
9 O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “O Senhor te perdoa, irmão, porque queres me contradizer, ser meu adversário e me implicar nessas coisas que não são do meu ofício”.
10 E disse: “Enquanto eu tive o ofício de cuidar dos frades, eles permaneceram em sua vocação e profissão, embora eu tenha sido adoentado desde o começo de minha conversão a Cristo, e com pouca solicitude da minha parte conseguia satisfaze-los com o exemplo e a pregação.
11 Mas depois que eu vi que o Senhor multiplicava todos os dias o número dos frades, e que eles, por causa da tibieza e do vazio de espírito começaram a desviar-se do caminho reto e seguro pelo qual costumavam andar,
12 e passaram a ir por um caminho mais largo, como disseste, não cuidando de sua profissão, vocação e bom exemplo,
13 e não abandonaram o caminho que tinham começado, apesar da minha pregação e exemplo, recomendei a Religião ao Senhor e aos ministros dos frades.
14 Porque, embora no tempo em que renunciei e deixei o ofício dos frades, eu tenha me desculpado diante dos frades no capítulo geral, pois por causa de minha doença não podia mais ter o cuidado e a solicitude por eles,
15 agora, se os frades andassem e tivessem andado de acordo com a minha vontade, por sua consolação eu não quisera que tivessem outro ministro senão eu, até o dia de minha morte.
16 Porque desde que um fiel e bom súdito conhece a vontade de seu prelado e a observa, o prelado precisa ter pouca solicitude por ele.
17 Eu até teria tanta alegria pela bondade dos frades e me consolaria por causa do meu proveito e do proveito deles que, se jazesse doente na cama, não seria pesado para mim satisfaze-los”.
18 E disse: “Meu ofício é espiritual, isto é, uma prelatura sobre os frades, porque dominar e corrigir os vícios.
19 Por isso, se não posso dominar e corrigir os vícios pela pregação e o exemplo, não quero ser um carrasco para bater e chicotear, como o poder deste século”.
20 Porque confio no Senhor que os inimigos invisíveis, que são os esbirros do Senhor ainda vão vingar-se deles para punir neste século e no futuro os que transgridem os mandamentos do Senhor, fazendo-os serem corrigidos pelas pessoas deste século com impropério e vergonha para eles; e voltarão a sua profissão e vocação.
21 Entretanto, até o dia de minha morte não vou parar de ensinar os frades a andarem pelo caminho que o Senhor me mostrou, pelo meu exemplo e ação.
22 E eu lhes mostrei e informei, de modo que não têm desculpas diante do Senhor, e eu, diante de Deus não vou mais ter que prestar contas deles”.
23 Por isso, fez então escrever em seu Testamento que todas as casas dos frades deviam ser de barro e paus, como um sinal da santa pobreza e humildade, e que as igrejas que fossem construídas para os frades fossem pequenas.
24 Quis até que essa reforma começasse, principalmente no que diz respeito às casas construídas de barro e paus,
25 e a todos os bons exemplos, no lugar de Santa Maria da Porciúncula, que foi o primeiro lugar onde, depois que os frades ali moraram, pó senhor começou a multiplicar os frades para que fosse um exemplo para sempre para os outros frades que estão e virão para a Religião.
26 Mas alguns disseram que não lhes parecia bom que as casas dos frades devessem ser construídas de paus e barro, porque em muitos lugares e províncias a madeira é mais cara do que as pedras.
27 E o bem-aventurado Francisco não queria disputar com eles, porque estava muito doente e próximo da morte, pois pouco viveu depois disso.
28 Por isso escreveu depois no seu Testamento: “Cuidem os frades de não receber absolutamente as igrejas e moradias que forem construídas para eles se não forem como convém à santa pobreza que na Regra prometemos, sempre nelas se hospedando como peregrinos e forasteiros.
29 Mas nós que estivemos com ele quando escreveu a Regra e quase todos os seus outros escritos, damos testemunho de que fez escrever muitas coisas na Regra e em seus outros escritos das quais alguns frades, principalmente prelados, foram contrários.
30 Por isso aconteceu que essas coisas em que os frades foram contrários ao bem-aventurado Francisco durante sua vida, agora, depois de sua morte, são muito úteis a toda a Religião.
31 Mas como ele temia muito o escândalo, condescendia, mesmo sem querer, com a vontade dos frades.
32 Mas muitas vezes dizia estas palavras: “Ai dos frades que são contrários a mim nisso, porque eu sei que é a vontade de Deus para a maior utilidade da Religião, ainda que, contra o meu querer, condescenda com a vontade deles”.
33 Por isso, dizia muitas vezes a seus companheiros: “Nisso está minha dor e minha aflição, porque obtenho essas coisas de Deus por sua misericórdia com muito trabalho de oração e meditação, para a utilidade presente e futura de toda a religião, e Ele me dá a certeza de que são segundo a sua vontade.
34 E alguns frades, pela autoridade e providência da sua ciência, esvaziam e são contrários a mim, dizendo: “Estas coisas devem ser tidas e observadas, e estas não!”.
35 Mas porque, como foi dito, tinha tanto medo de escândalo, permitia fazer muitas coisas que não estavam de acordo com a sua vontade e condescendia com a vontade deles.
Capítulo 107
1 Como nosso santíssimo pai Francisco morasse, em certa época, junto da igreja de Santa Maria da Porciúncula, e costumasse, costumava, todos os dias, depois da refeição, trabalhar com seus frades em algum serviço, contra o vício da ociosidade,
2 considerando, que o bem para si e para seus frades, que com a cooperação de Deus conseguiam no tempo da oração, não devia ser perdido depois da oração por palavras ociosas ou inúteis, para evitar o mal das palavras ociosas ou inúteis, ordenou estas coisas e mandou que fossem observadas pelos frades:
3 “Se algum frade, estando à-toa ou fazendo algum trabalho entre os frades, proferir alguma palavra ociosa ou inútil, tenha que dizer uma vez o Pai-nosso, louvando a deus no começo e no fim de sua oração, mas de tal modo que, se tiver consciência e se acusar primeiro de sua falta, dirá o Pai-nosso e os Louvores a Deus, como foi dito, pelo bem de sua alma.
4 Mas se for primeiro advertido por algum dos irmãos, tenha que dizer o Pai-nosso, do modo predito, pela alma de quem o corrigiu.
5 Mas se, por acaso, advertido por causa disso, desculpar-se e não quiser rezar o pai-nosso, tenha que rezar do mesmo modo dois Pai-nossos pela alma do frade que o corrigiu, se constar, pelo testemunho desse frade ou de um outro, que na verdade ele disse essa palavra ociosa ou inútil.
6 Esses Louvores de Deus, como foi dito, no princípio e no fim de sua oração, devem ser ditos tão alto e manifestamente que os frades que lá estão possam entender e ouvir.
7 Esses frades, enquanto ele rezar, calem-se e escutem.
8 Mas se algum deles, contrariando a isto, não ficar calado, terá que dizer um Pai-nosso do mesmo jeito, com os Louvores de Deus, pela alma do frade que estiver rezando.
9 “E qualquer fradem quando entrar numa cela, numa casa ou em outro lugar qualquer e lá encontrar um ou mais frades, sempre deverá louvar diligentemente e bendizer a Deus”.
10 Era costume do pai santíssimo dizer sempre esses Louvores, e com vontade e desejos ardentíssimos queria que também os outros frades fossem semelhantemente solícitos e devotos para rezá-los.
Capítulo 108
1 No tempo daquele capítulo celebrado no mesmo lugar, em que os frades foram enviados pela primeira vez a algumas províncias ultramarinas, quando acabou o capítulo, o bem-aventurado Francisco, permanecendo nesse lugar com alguns frades, disse-lhes:
2 “Caríssimos irmãos, eu tenho que ser forma e exemplo de todos os frades.
3 Portanto, se mandei meus frades para lugares longínquos onde vão trabalhar, passar vergonha, fome, e ter que aguentar numerosas necessidades, parece-me justo e bom que também eu vá semelhantemente para alguma província longínqua,
4 principalmente para que os frades possam suportar mais pacientemente suas necessidades e tribulações, quando ouvirem dizer que eu também as suporto”.
5 E lhes disse: “Ide, portanto, e orai ao Senhor para que me dê de escolher a província que for para maior louvor de deus e proveito e salvação das almas, e para bom exemplo de nossa religião”.
6 Pois era costume do pai santíssimo, não só quando ia pregar em alguma província longínqua mas também quando ia para as províncias próximas, orar ao senhor e mandar os frades orarem para que o Senhor dirigisse seu coração para ir onde quer que fosse melhor segundo Deus.
7 Por isso os frades foram para a oração e, quando acabaram, voltaram para ele.
8 Ele lhes disse: “Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, de sua gloriosa Virgem Mãe e de todos os santos, escolho a província da França, onde há um povo católico, principalmente porque entre os outros católicos da santa Igreja demonstram a maior reverência ao Corpo de Cristo; o que para mim é muito grato.
9 Por isso vou ter a maior boa vontade de viver com eles”.
10 Pois o bem-aventurado Francisco tinha tanta reverência e devoção ao Corpo de Cristo, que quis que fosse escrito na Regra que os frades tivessem cuidado e solicitude para com ele nas províncias em que morassem,
11 e admoestassem e pregassem sobre isso aos clérigos e sacerdotes, para que colocassem o Corpo de Cristo em um lugar bom e conveniente.
12 E, se não agissem assim, queria que os frades o fizessem.
13 Houve um tempo em que até quis enviar frades com âmbulas por todas as províncias, e onde encontrassem o Corpo de Cristo ilicitamente colocado, que eles mesmos lhe dessem um lugar honroso.
14 Pois, por reverência ao santíssimo Corpo e Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, também quis pôr na Regra
15 que os frades, onde quer que encontrem as palavras e nomes escritos do Senhor, pelos quais faz-se o Santíssimo Sacramento, mal guardadas ou desrespeitosamente espalhadas em algum lugar, as recolhessem e repusessem, honrando o Senhor nas palavras que disse.
16 Pois muitas coisas são santificadas pelas palavras de deus, e em virtude das palavras de Cristo confecciona-se o sacramento do altar.
17 E embora não tenha escrito isso na Regra, principalmente porque aos frades ministros não parecia bom que os frades tivessem isso como um mandamento, no seu testamento e em outros escritos seus o santo pai quis deixar sua vontade sobre essas coisas.
18 Também quis mandar alguns outros frades por todas as províncias com boas e bonitas ferramentas para fazer hóstias.
19 Quando o bem-aventurado Francisco escolheu entre os frades os que queria levar consigo, disse-lhes: “Em nome do Senhor, ide dois a dois comportadamente pelo caminho, e principalmente em silêncio, de manhã até depois de tércia, orando ao Senhor em vossos corações.
20 E as palavras ociosas e inúteis não sejam ditas entre vós.
21 Pois mesmo que estejais caminhando, vossa conversação seja tão conveniente como se estivésseis no eremitério ou na cela, porque onde quer que estejamos ou caminhemos, temos a nossa cela conosco:
22 pois o irmão corpo é nossa cela e a alma é o eremita que mora dentro da cela para orar a Deus e meditar.
23 Por isso, se a alma não permanecer no sossego e na solidão em sua cela, de pouco adianta para o religioso a cela construída com a mão.
24 Mas quando chegaram a Arezzo, havia o maior escândalo e uma guerra quase na cidade inteira, de dia e de noite, por causa de duas facções que havia muito tempo se odiavam.
25 Quando o bem-aventurado Francisco viu isso e ouviu tamanho rumor e clamor de dia e de noite, estando hospedado em certo hospital num burgo fora da cidade, pareceu-lhes que os demônios estavam exultantes com isso [e incitavam] todas as pessoas a destruir a cidade com fogo e outros perigos.
26 Então, movido pela piedade para com aquela cidade, disse ao sacerdote Frei Silvestre, homem de Deus, de grande fé, de admirável simplicidade e pureza, que o santo pai venerava como um santo:
27 ”Vá à frente da porta da cidade e mande em alta voz que todos os demônios saiam desta cidade.
28 Frei Silvestre levantou-se e foi para diante da porta da cidade, gritando em alta voz:
29 “Louvado e bendito seja o Senhor Jesus Cristo.
30 Da parte de Deus onipotente e em virtude da santa obediência do nosso santíssimo pai Francisco, eu mando aos demônios que saiam todos desta cidade”.
31 E aconteceu que, pela misericórdia divina e pela oração do bem-aventurado Francisco, mesmo sem nenhuma pregação, pouco depois voltaram todos à paz e à unidade.
32 E como não lhes pôde pregar nessa ocasião, o bem-aventurado Francisco, mais tarde, quando estava pregando a eles certa vez, disse-lhes no primeiro sermão da pregação:
33 “Eu vos falo como a presos dos demônios, porque vós mesmos vos amarrastes e vendestes, como animais no mercado, por causa da vossa miséria, e vos entregastes nas mãos dos demônios; isso aconteceu quando vos expusestes à vontade daqueles que destruíram e destroem a si mesmos e a vós, e querem destruir a cidade inteira.
34 Mas vós sois pessoas miseráveis e ignorantes pois sois ingratos aos benefícios de deus, que, mesmo que alguns de vós não saibam, em certa hora libertou esta cidade pelos méritos de um santíssimo Frei Silvestre”.
35 Quando o bem-aventurado Francisco chegou a Florença, aí encontrou o senhor Hugolino, bispo de Óstia, mais tarde papa, que tinha sido enviado pelo papa Honório como legado ao Ducado e à Toscana, à Lombardia, à Marca de treviso até Veneza.
36 O senhor bispo ficou muito alegre com a chegada dele.
37 Mas quando ouviu o bem-aventurado Francisco dizer que queria ir para a França, proibiu que fosse, dizendo-lhe:
38 “Irmão, não quero que vás para lá dos montes, porque há muitos prelados e outros que vão querer impedir os bens de tua religião na cúria romana.
39 Mas eu e outros cardeais, que amamos tua religião, com maior boa vontade a protegeremos e ajudaremos, se permanecerdes nos arredores desta província”.
40 mas o bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Senhor, é uma grande vergonha para mim, que mandei meus frades para províncias remotas e longínquas, se eu ficar nas províncias daqui”.
41 Mas o senhor bispo disse, contestando-o: “Por que mandaste teus frades tão longe para morrerem de fome e terem tantas outras tribulações?”.
42 O bem-aventurado Francisco respondeu com grande fervor de espírito e espírito de profecia:
43 “Senhor, julgais e credes que o Senhor enviou frades só para estas províncias?
44 Mas eu vos digo em verdade que o Senhor escolheu e enviou os frades para o proveito e salvação das almas das pessoas de todo o mundo, e não vão ser recebidos só nas terras dos fiéis mas também dos infiéis.
45 E enquanto observarem o que prometeram a Deus, assim o Senhor lhes dará o que for necessário tanto na terra dos infiéis quanto na dos fiéis”.
46 E o senhor bispo ficou admirado com suas palavras, afirmando que dizia a verdade.
47 E assim o senhor bispo não permitiu que ele fosse para a França;
48 mas o bem-aventurado Francisco mandou para lá Frei Pacífico com outros frades, voltando ele para o vale de Espoleto.
Capítulo 109
1 Certa ocasião, como se aproximasse o capítulo dos frades, que devia ser feito junto da igreja de Santa Maria da Porciúncula, disse o bem-aventurado Francisco a seu companheiro: “Não me parece que eu seja um frade menor a não ser que esteja no estado que vou te dizer”.
2 E disse: “Eis que os frades, com grande devoção e veneração vem e me convidam para o capítulo, e eu, movido por sua devoção, vou ao capítulo com eles.
3 E, todos reunidos, pedem que anuncie a palavra de Deus entre eles; levantando-me, prego-lhes como me ensinar o Espírito Santo.
4 Acabada a pregação, digamos que pensem e digam contra mim:
5 Não queremos que reines sobre nós (cfr. Lc 19,14); pois não és eloquente e és simples demais, e ficamos com muita vergonha de ter um prelado tão simples e desprezível acima de nós; por isso não tenhas daqui em diante a pretensão de te chamar de nosso prelado.
6 E sim me expulsam envergonhando-me.
7 “Por isso não me parece que eu seria um frade menor se não me alegrar do mesmo modo, quando me desprezam e me expulsam com vergonha, não querendo que eu seja o seu prelado, como quando me honra e veneram, sendo, de qualquer forma, igual o proveito para eles.
8 Pois, se me alegro de seu proveito e devoção, quando me exaltam e honram, onde pode haver perigo da alma, é mais conveniente que eu deva me alegrar e ficar satisfeito com o meu proveito e a salvação de minha alma, quando me expulsam com vergonha, onde há lucro da alma”.
Capítulo 110
1 Certa ocasião, no verão, quando o bem-aventurado Francisco estava no mesmo lugar e ficava na última cela perto da cerca da horta, atrás da casa, onde depois de sua morte ficou Frei Rainério, hortelão,
2 aconteceu que certo dia, quando descia daquela cela, havia uma cigarra no ramo de uma figueira, que estava junto da cela, de modo que podia tocá-la.
3 Por isso, estendendo-lhe a mão, disse-lhe: “Vem comigo, irmã cigarra”.
4 Na mesma hora ela subiu nos dedos de sua mão, e ele começou a tocá-la com um dedo da outra mão, dizendo-lhe; “Canta, minha irmã cigarra”.
5 Ela obedeceu imediatamente e começou a cantar, e o bem-aventurado Francisco ficava muito consolado por isso e louvava a Deus.
6 E assim por uma boa hora segurou-a em sua mão; depois recolocou-a no ramo da figueira, de onde a tirara.
7 e assim por oito dias contínuos, quando descia da cela encontrava-a no mesmo lugar e todos os dias tomava-a na mão e, assim que dia para ela cantar, tocando-a, ela cantava.
8 Depois de oito dias, disse a seus companheiros: “Vamos dar licença a nossa irmã cigarra que vá para onde quiser; pois já nos consolou bastante; e a carne poderia sentir vanglória por causa disso”.
9 E quando lhe deu licença, ela foi logo embora e não apareceu mais.
10 E os companheiros ficaram admirados com isso, porque ela assim lhe obedeceu e foi mansa com ele.
11 Pois o bem-aventurado Francisco se alegrava tanto com as criaturas por amor do Criador, que o Senhor, para consolação de seu exterior e de seu interior fez-se com que fossem mansas para eles as criaturas que são selvagens para os homens.