Capítulo 81
1 De maneira semelhante, certa vez, quando ficou em um eremitério para a quaresma de São Martinho e os frades, por causa de sua doença, prepararam com toucinho os pratos que lhe davam a comer, principalmente porque o óleo fazia muito mal a suas doenças, no fim da quaresma, quando pregava a uma grande congregação de povo, não muito longe daquele eremitério, disse-lhes logo no começo da pregação:
2 “Vós viestes a mim com grande devoção e achais que eu sou um santo homem ms a Deus e a vós confesso que nesta quaresma, lá no eremitério, comi pratos temperados com toucinho”.
3 Até mais, raras ou poucas vezes aconteceu que, se os frades ou os amigos dos frades, quando comia em suas casas, ou preparavam manifestamente alguma iguaria para seu corpo por causa das doenças, quando ele saia da casa não deixava de dizer, diante dos frades ou também diante dos seculares, que de nada sabiam, com toda clareza:
4 “Como tais pratos”, não querendo ocultar às pessoas o que era manifesto diante de Deus.
5 Até, em toda parte ou diante de quem quer que fosse, religiosos ou seculares, se seu espírito fosse movido para a vanglória, para a soberba, ou para qualquer vício, confessava-se imediatamente diante deles, nuamente e sem encobrir nada.
6 Por isso, uma vez, disse a seus companheiros: “Quero viver de tal maneira diante de Deus nos eremitérios e outros lugares onde fico, como as pessoas me conhecem e me vêem;
7 porque se acham que eu sou um santo homem e eu não fizer o que convém que faça um homem santo, seria hipócrita”.
8 Por isso em certa ocasião, no inverno, por causa da doença do baço e do frio no estômago, um dos companheiros, que era seu guardião, adquiriu uma pele de raposa,
9 e rogou que permitisse costurar a pele no avesso da túnica, junto do baço e do estômago, porque, então, estava fazendo muito frio.
10 E ele, desde que começou a servir a Cristo, durante todo o tempo, até o dia de sua morte, nunca quis usar nem ter a não ser uma túnica remendada, quando queria remendá-la.
11 Então o bem-aventurado Francisco respondeu: “Se queres que eu tenha esse pele por dentro, manda pôr algum pedacinho dessa pele por fora, costurada na túnica, como testemunho para as pessoas de que eu tenho uma pele por dentro”.
12 E fez que fosse assim; mas não usou muito, ainda que lhe fosse necessária por causa de suas doenças.
Capítulo 82
1 Em outra ocasião, ia pela cidade de Assis e com ele iam muitas pessoas; e uma velhinha pobrezinha pediu-lhe uma esmola por amor de deus, e ele deu na mesma hora a capa que tinha nas costas.
2 E na mesma hora confessou diante deles que tinha tido vanglória por causa disso.
3 E há muitos outros exemplos parecidos com esses, que vimos e ouvimos nós que estivemos com ele, mas não podemos contar porque seria longo escrever e narrar.
4 O sumo e principal cuidado do bem-aventurado Francisco consistiu nisso: em não ser hipócrita diante de Deus.
5 A inda que fossem necessários certos pratos para o seu corpo por causa da doença, não deixava de pensar que tinha que dar bom exemplo de si mesmo aos frades e aos outros, para não lhes dar ocasião de murmurar ou de mau exemplo.
6 Por isso preferia suportar com paciência e boa vontade as necessidades do corpo, e aguentou-as até o dia de sua morte, em vez de satisfazer a si mesmo, embora pudesse faze-lo de acordo com deus e com o bom exemplo.
Capítulo 83
1 Quando o bispo de Óstia, que depois foi apostólico, viu que o bem-aventurado Francisco tinha sido e ainda era sempre tão austero com o seu corpo, e principalmente que começara a perder a luz de seus olhos mas não queria fazer-se curar disso, admoestou-o com muita piedade e compaixão dizendo-lhe:
2 “Irmão, não ages bem quando não deixas que te ajudem na doença dos olhos, porque para ti e para os outros são muito úteis tua saúde e tua vida.
3 Pois se tiveste compaixão de teus frades e sempre foste e és misericordioso com eles, não deverias ser cruel contigo mesmo numa necessidade e enfermidade tão grande e manifesta.
4 Por isso eu te mando que te faças ajudar e tratar.
5 De maneira semelhante, dois anos antes de sua morte, quando já estava muito doente, especialmente da enfermidade dos olhos, e morasse numa pequena cela feita de esteiras junto de São Damião, considerando e vendo o ministro geral que estava tão afetado pela doença dos olhos, mandou-lhe que fizesse e deixasse ajudar e tratar.
6 Chegou a dizer-lhe que queria estar presente quando o médico começasse a trata-lo, principalmente para que se fizesse cuidar mais seguramente. E para conforta-lo, porque estava muito afetado por isso.
7 Nesse meio tempo, fazia muito frio e o tempo não era apropriado para as curas.
8 Como o bem-aventurado Francisco tivesse ficado deitado nesse lugar por uns cinqüenta dias ou mais, não podia ver a luz do dia nem a luz do fogo de noite, mas ficava sempre dentro da casa e permanecia no escuro naquela pequena cela.
9 Além disso também tinha grandes dores nos olhos de dia e de noite, de modo que quase não podia dormir e descansar à noite: isso fazia muito mal e fazia agravar-se muito a doença dos olhos e as outras doenças.
10 Além disso, se às vezes queria descansar e dormir, havia na casa e na celazinha em que estava deitado, que era feita de esteiras em uma parte da casa, tantos ratos passando e correndo por cima e ao redor dele, que não o deixavam dormir.
11 Mesmo no tempo da oração muito o impediam.
12 E não só de noite mas também de dia atribulavam-no demais, de modo que, até quando comia, subiam na sua mesa de maneira que seus companheiros acharam que era uma tentação diabólica, e assim foi.
13 Por isso, uma noite, pensando o bem-aventurado Francisco que estava tendo tantas tribulações, ficou com pena de si mesmo e disse lá dentro de si: “Senhor, olha para me socorrer, em minhas enfermidades, para que eu possa tolerar com paciência”.
14 E, de repente, foi-lhe dito em espírito: “Dize-me, irmão: se alguém, por essas tuas enfermidades e tribulações te desse um tesouro tão grande e precioso que, se toda a terra fosse puro ouro, todas as pedras fossem pedras preciosas, e toda a água fosse bálsamo,
15 todavia tu reputarias e terias por nada tudo isso, por serem matérias: terra, pedras e água, em comparação com o grande e precioso tesouro que te será dado.
16 Não te alegrarias muito?
17 O bem-aventurado Francisco respondeu: “Senhor, esse tesouro seria grande e impossível de investigar até o fim, muito precioso e por demais amável e desejável”.
18 E lhe disse: “Então, irmão, alegra-te e te rejubila bastante em tuas enfermidades e tribulações, porque de resto podes estar tão seguro como se já estivesses no meu reino”.
19 Ao acordar de manhã, disse aos seus companheiros: “Se um imperador desse um reino inteiro a um seu servo, ele não deveria alegrar-se muito? E se desse todo o império, não se alegraria ainda mais?
20 E lhes disse: “Por isso eu tenho que me alegrar agora com minhas doenças e tribulações e me confortar no Senhor, e sempre dar graças a deus pai e a seu único Filho nosso Senhor Jesus Cristo, e ao Espírito Santo, por tamanha graça e bênção que me deram, porque, vivendo ainda na carne, por sua misericórdia dignou-se dar-me a certeza do reino, a mim, seu servozinho indigno.
21 Por isso eu quero, para o seu louvor e para nossa consolação e edificação do próximo, fazer um novo Louvor do Senhor por suas criaturas, das quais nos servimos todos os dias e sem as quais não podemos viver.
22 E nas quais o gênero humano ofende muito o Criador, e todos os dias somos ingratos por tão grande graça, porque não louvamos como devemos o nosso Criador e doador de todos os bens”.
23 E sentando-se começou a meditar e depois a dizer: “Altíssimo, onipotente, bom Senhor”.
24 E compôs um cântico nessas palavras e ensinou seus companheiros a cantá-lo.
25 Pois seu espírito estava, então, em tamanha doçura e consolação, que queria mandar buscar Frei Pacífico, que no século era chamado rei dos versos e foi um mestre muito cortês de cânticos, e dar-lhe alguns frades bons e espirituais, para que fossem pelo mundo pregando e louvando a Deus.
26 Pois queria e dizia que, primeiro, algum deles, que soubesse pregar, pregasse ao povo, e depois da pregação cantassem os Louvores do Senhor como jograis de deus.
27 Terminados os Louvores, queria que o pregador dissesse ao povo: “Nós somos os jograis do Senhor e nisto queremos a vossa remuneração, isto é, que estejais na verdadeira penitência”.
28 E dizia: “Que são os servos de Deus senão, de algum modo, uns jograis seus, que devem mover o coração dos homens e levanta-los para a alegria espiritual?”.
29 E especialmente dos frades menores dizia que foram dados ao povo para sua salvação.
30 Pois os Louvores do Senhor que vez, a saber: Altíssimo, onipotente, bom Senhor, deu-lhes o nome de Cântico de Frei Sol, que a é a mais bonita de todas as criaturas e mais pode a Deus se assemelhar.
31 Por isso, dizia: “De manhã, quando nasce o sol, toda pessoa deveria louvar a deus que o criou, porque por ele os olhos se iluminam de dia;
32 de tarde, quando cai a noite, toda pessoa deveria louvar a Deus pela outra criatura, o irmão fogo, porque por ele nossos olhos se iluminam de noite”.
33 E disse: “Nós todos somos como que cegos, e o Senhor ilumina nossos olhos por essas duas criaturas.
34 Por isso sempre devemos louvar o glorioso Criador por essas e outras criaturas suas de que usamos todos os dias”.
35 Porque em sua saúde e enfermidade fez e fazia de boa vontade louvar o Senhor e também animava os outros a isso.
36 Mesmo quando estava sofrendo pela doença, começava ele mesmo a dizer os Louvores do Senhor, e depois fazia que seus companheiros cantassem para que, em consideração do louvor do Senhor, pudesse ser esquecida a atrocidade das dores e doenças.
37 E assim fez até o dia de sua morte.
Capítulo 84
1 Nesse mesmo tempo, quando jazia doente, tendo já pregado e composto os Louvores, o que então era bispo da cidade de Assis, excomungou o prefeito da cidade.
2 Pois, indignado contra ele, o que era prefeito fez forte e curiosamente preconizar pela cidade de Assis que ninguém vendesse ou comprasse alguma coisa dele, ou fizesse algum contrato; e por isso eles se odiavam muito um ao outro.
3 O bem-aventurado Francisco, como estava tão doente. Ficou com pena deles, principalmente porque nenhum religioso ou secular se intrometia para cuidar de sua paz e concórdia.
4 E disse a seus companheiros: “É uma grande vergonha para vós, servos de Deus, que o bispo e o prefeito se odeiem desse jeito e nenhuma pessoa entre no meio para cuidar de sua paz e concórdia”.
5 E sim fez um verso nas seus Louvores para aquela ocasião, este:
6 Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdiam pelo teu amor e suportam enfermidade e tribulação;
7 bem-aventurados os que as suportarem em paz, porque por ti, Altíssimo, serão coroados”.
8 Depois chamou um de seus companheiros, dizendo-lhe: “Vá dizer de minha parte ao prefeito que ele com os magnatas da cidade e outros, que pode levar consigo, venha ao palácio do bispo”.
9 E quando ele foi disse a outros dois companheiros seus: “Ide também diante do bispo, do prefeito e dos outros que estão com eles e cantai o Cântico de Frei Sol. E confio no Senhor que há de humilhar os corações deles, vão fazer as pazes entre eles e voltaram à antiga amizade e bem-querer”.
10 E quando todos se reuniram na praça do claustro da casa do bispo, levantaram-se aqueles dois frades e um disse: “O bem-aventurado Francisco compôs em sua doença os Louvores do Senhor por suas criaturas, para louvor dele e edificação do próximo.
11 Por isso ele vos roga que as ouçais com grande devoção”.
12 E então começaram a cantar e a dizer-lhes.
13 E imediatamente o prefeito levantou-se, juntou os braços e as mãos com grande devoção, como se fosse o Evangelho do Senhor, e também com lágrimas, ouviu atentamente.
14 Pois tinha muita confiança e devoção pelo bem-aventurado Francisco.
15 Quando acabaram os Louvores do Senhor, o prefeito disse diante de todos: “Na verdade eu vos digo que perdôo não só ao senhor bispo, que preciso ter como meu senhor, mas perdoaria mesmo quem matasse meu irmão ou filho”.
16 E assim se lançou aos pés do senhor bispo, dizendo-lhe: “Eis que estou pronto a satisfazer-vos em tudo, como vos aprouver por amor de nosso Senhor Jesus Cristo e de seu servo bem-aventurado Francisco”.
17 O bispo, tomando-o pelas mãos, levantou-o e lhe disse: “Por meu ofício convinha que eu fosse humilde, mas como sou notavelmente inclinado à ira, é preciso que me perdoes”.
18 E assim com muita bondade e afeição se abraçaram e beijaram”.
19 E os frades ficaram muito admirados, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco porque aconteceu à letra o que o bem-aventurado Francisco tinha predito sobre a paz e a concórdia deles.
20 E todos os outros, que lá estavam presentes e que ouviram, tiveram o fato como um grande milagre, atribuindo-o aos méritos do bem-aventurado Francisco, porque o senhor visitou-os tão depressa que, sem lembrar nenhuma palavra, voltaram de tamanho escândalo para tanta concórdia.
21 Por isso nós que estivemos com o bem-aventurado Francisco damos testemunho de que predizia: “Alguma coisa é assim, ou vai ser”, acontecia quase à letra.
22 E nós vimos com nossos olhos, mas seria longo escrever e contar todas essas coisas.
Capítulo 85
1 Semelhantemente, naqueles dias e no mesmo lugar, depois que o bem-aventurado Francisco compôs os Louvores do Senhor pelas criaturas, também fez algumas palavras com canto para maior consolação das senhoras pobres do mosteiro de São Damião, principalmente porque sabia que elas estavam muito atribuladas por sua enfermidade.
2 E como não podia consola-las e visitá-las pessoalmente por sua doença, quis que aquelas palavras fossem anunciadas por seus companheiros.
3 Nessas palavras, então e sempre, quis deixar para elas, com clareza e brevidade, a sua vontade: como deveriam ser unânimes na caridade e comportar-se umas com as outras, porque por seu exemplo e pregação foram convertidas a Cristo, quando os frades ainda eram poucos.
4 A conversão e o comportamento delas é exaltação e edificação não só para a Religião dos frades, da qual é uma plantinha, mas também para toda a Igreja de Deus.
5 Então, como o bem-aventurado Francisco sabia que, desde o começo de sua conversão, elas tinham levado e levavam ainda vida dura e pobrezinha e, por vontade e necessidade, seu espírito sempre se movia de piedade para com elas.
6 Por isso, nessas mesmas palavras rogou-as que, como o Senhor tinha-as reunido de muitas partes para a santa caridade, a santa pobreza e a santa obediência, nelas deviam assim viver sempre e morrer.
7 E especialmente que deviam prover seus corpos com as esmolas que Deus lhes desse, com alegria, ação de graças e discrição.
8 E mais do que tudo que as sãs, no trabalho que mantinham por suas irmãs doentes, e as enfermas fossem pacientes em suas doenças e nas necessidades que padeciam.
Capítulo 86
1 Mas aconteceu que, quando se aproximou o tempo adequado para tratar da doença dos olhos, o bem-aventurado Francisco saiu daquele lugar, embora estivesse muito doente dos olhos.
2 Levava na cabeça uma espécie de capuz grande, como os frades tinham feito para ele, e um pano de lã e linha costurado no capuz na frente dos olhos, porque não podia olhar e ver a luz do dia por causa das grandes dores provenientes da doença dos olhos.
3 E os companheiros levaram-no em uma montaria para o eremitério de Fonte Colombo, perto de Rieti, para ter uma consulta com um médico de Rieti que sabia medicar a doença dos olhos.
4 Quando foi lá, o médico disse ao bem-aventurado Francisco que queria fazer uma cauterização desde o maxilar até o supercílio de seu olho, que era mais doente que o outro. Mas o bem-aventurado Francisco não queria começar o tratamento antes que chegasse Frei Elias.
5 Como o esperaram e não veio, porque, por muitos impedimentos que teve, não pôde vir, ele também duvidava se devia começar o tratamento.
6 Mas, forçado pela necessidade, principalmente por obediência ao senhor bispo de Óstia e do ministro geral, propô-se a obedece-los, embora fosse muito duro para ele que tivessem tantas solicitudes por sua causa.
7 Por isso queria que seu ministro tomasse a decisão.
8 Depois, uma noite, como não pudesse dormir por causa das dores de sua doença, com piedade e compaixão por si mesmo, disse a seus companheiros: “Caríssimos irmãos e filhos meus, que não vos aborreça nem seja pesado trabalhar pela minha doença, porque o Senhor, por mim, seu pequeno servo, vai restituir-vos todo o fruto de vossas ações neste século e no que vem pelo que não puderdes fazer por vossa solicitude e enfermidade.
10 Vós até tereis um lucro maior por isto do que os que ajudam toda a religião e a vida dos frades.
11 Até podeis também dizer-me: Fazemos nossas despesas por ti e o Senhor vai ficar nosso devedor.
12 Mas o santo pai dizia essas coisas para ajudar e levantar a pusilanimidade e a fraqueza do espírito deles, para que não acontecesse que, alguma vez, tentados por causa daquela trabalho, viessem a dizer: “Nós não somos capazes de rezar nem de tolerar tanto trabalho”, e não se tornassem tediosos e pusilânimes, perdendo assim o fruto do trabalho.
13 E aconteceu que, um dia, veio o médico, trazendo o ferro com fazia cauterizações para a doença dos olhos; mandou fazer fogo para esquentar o ferro e, quando o fogo foi aceso, colocou nele o ferro.
14 O bem-aventurado Francisco, para dar força ao seu espírito e não se assustar, disse ao fogo: “Meu irmão fogo, nobre e útil entre as outras criaturas que o Altíssimo criou, sê cortês comigo nesta hora, porque outrora eu te amei e ainda amarei por amor daquele Senhor que te criou.
15 Também suplico ao nosso Criador, que te criou, que tempere teu calor de tal forma que eu possa suporta-lo”.
16 Quando acabou a oração, fez o sinal da crua sobre o fogo.
17 Mas nós que estávamos com ele fugimos todos, por piedade e compaixão com ele, deixando o médico sozinho com ele.
18 Feita a cauterização, voltamos para junto dele.
19 Ele nos disse: “Medrosos e de pouca fé, por que fugistes?
20 Na verdade eu vos digo que não senti nenhuma dor nem o calor do fogo; até, se não está bem cozido, pode cozinhar melhor!”.
21 O médico ficou muito admirado com isso, tendo-o por um grande milagre, porque ele não se mexeu nem um pouco.
22 E o médico disse: “Meus irmãos, eu vos digo que, com a experiência que tenho de algumas pessoas, temo que não poderia suportar uma cauterização tão grande não só uma pessoa fraca e doente, mas mesmo alguém que fosse forte e corporalmente sadio”.
23 Pois a cauterização foi longa, começando perto da orelha e chegando até o supercílio do olho, por causa do líquido que escorria do olho todos os dias, dia e noite, por muitos anos.
24 Por isso foi necessário, de acordo com o pensamento daquele médico, que todas as veias da orelha até o supercílio do olho, fossem cortadas, o que era totalmente contrário de acordo com a opinião dos outros médicos; e essa era a verdade, porque de nada lhe adiantou.
25 Do mesmo jeito, um outro médico furou-lhe as duas orelhas, e também não lhe adiantou nada.
26 E não é de admirar se o fogo e outras criaturas às vezes o veneravam: porque, como vimos nós que estivemos com ele, amava-as e as venerava com tanto afeto de caridade.
27 E se deleitava tanto com elas, e seu espírito tinha tamanha compaixão e piedade por elas que se perturbava quando alguém não as tratava bem.
28 E também conversava com elas com alegria interior e exterior, como se sentissem, entendessem e falassem de Deus, de forma que, muitas vezes, quando fazia isso, era arrebatado na contemplação de deus.
29 Pois, uma vez, quando estava sentado perto do fogo, sem que ele percebesse, o fogo invadiu seus panos de linho que cobriam a perna.
30 Quando sentiu o calor do fogo e o seu companheiro viu que o fogo estava queimando seus panos, correu para apagá-lo.
31 Mas ele lhe disse: “Irmão caríssimo, não queira fazer mal ao irmão fogo”.
32 E assim não lhe permitiu de modo algum que o apagasse.
33 Mas ele foi na mesma hora ao frade que era seu guardião, levou-o a ele, e assim, contra a vontade dele, começou a apagar o fogo.
34 Ele não queria que apagassem as velas, as candelas, as lâmpadas ou o fogo, como se costuma fazer quando é necessário, tanta era a piedade e afeto que tinha por ele.
35 Também não queria que o irmão jogasse fora fogo ou lenha fumegante, como é costume fazer muitas vezes, mas queria que os colocasse delicadamente no chão, por reverência Àquele de quem é criatura.
Capítulo 87
1 Outra vez, quando vez uma quaresma no Monte Alverne, um dia, quando o seu companheiro, na hora de comer, acendeu fogo na cela onde ele comia, deixou o fogo aceso e foi para junto do bem-aventurado Francisco na cela onde rezava e dormia, de acordo com o costume, para ler para si mesmo o santo Evangelho que se dizia na missa daquele dia;
2 porque o bem-aventurado Francisco, quando não podia ir à Missa, sempre queria ouvir o Evangelho daquele dia antes de comer.
3 Quando o bem-aventurado Francisco veio comer na cela onde estava aceso o fogo, a chama do fogo já tinha subido até o alto da cela e ela estava queimando. Seu companheiro começou a apagar o fogo, como podia, mas sozinho não conseguia.
4 E o bem-aventurado Francisco não quis ajudá-lo; pegou uma pele com que se cobria de noite e foi para o bosque.
5 Os frades do lugar, embora permanecessem longe da cela, porque a cela ficava afastada do lugar dos frades, quando perceberam que a cela ardia, foram e apagaram o fogo.
6 Depois o bem-aventurado Francisco voltou para comer.
7 Depois da refeição, disse a seu companheiro: “Não quero mais me cobrir com esta pele porque por avareza não quis que o irmão fogo a comesse”.
Capítulo 88
1 Também, quando lavava as mãos, escolhia um lugar em que aquela água usada não fosse pisada pelos pés.
2 Quando precisava andar sobre pedras, fazia-o com temor e reverência, por amor daquele que é chamado de Pedra.
3 Por isso, quando dizia aquele versículo do Salmo onde se lê: Exaltaste-te sobre a pedra ((cfr. Sl 60,3), por grande reverência e devoção dizia: “Exaltaste-me sob os pés da Pedra”.
4 Também dizia para o frade que cortava lenha para o fogo que não cortasse a árvore inteira, mas que as cortasse de tal modo que uma parte fosse cortada e outra ficasse. Também deu essa ordem a um frade do lugar onde ele morava.
5 Também dizia ao frade que cuidava da horta que não cultivasse toda a terra da horta só para ervas comestíveis, mas deixasse uma parte de terra para produzir ervas viçosas que, a seu tempo, produzissem flores para os frades.
6 Dizia até que o irmão hortelão devia fazer um bonito canteiro, em algum canto da horta, pondo e plantando aí de todas as plantas odoríferas e todas as plantas que produzem flores bonitas, para que, a seu tempo, convidassem os que as viam ao louvor de Deus,
7 porque toda criatura diz e clama: “Deus me fez por tua causa, ó homem”.
8 Por isso nós que estivemos com ele costumávamos vê-lo sempre alegre, interior e exteriormente, com quase todas as criaturas, tocando-as e olhando-as com prazer, que seu espírito não parecia estar na terra mas no céu.
9 E isso é manifesto e verdadeiro, porque por causa das muitas consolações que teve e tinha por causa das criaturas de Deus, um pouco antes de sua morte compôs e fez uns Louvores do Senhor por suas criaturas, para animar os corações dos ouvintes para o louvor de deus e para que o Senhor fosse louvado por todos em suas criaturas.
Capítulo 89
1 Nesse mesmo tempo, uma mulher pobrezinha de Machilone foi a Rieti por causa de uma doença dos olhos.
2 Certo dia, quando o médico veio ao bem-aventurado Francisco, disse-lhe: “Irmão, uma mulher doente dos olhos veio me procurar; mas é tão pobrezinha que tenho que ajuda-la por amor de Deus e pagar suas despesas”.
3 Ouvindo isso, o bem-aventurado Francisco ficou com pena dela, chamou um de seus companheiros, que era o guardião, e lhe disse: “Irmão guardião, temos o que devolver o que é dos outros”. Ele disse: “O que é, irmão?”.
4 E ele: “Temos que devolver esta capa que recebemos emprestada daquela mulher pobrezinha e doente dos olhos”.
5 Disse-lhe o guardião: “Irmão, faz o que te parecer melhor”.
6 O bem-aventurado Francisco chamou alegremente um homem espiritual, que era muito familiar, e lhe disse:
7 “Pega esta capa, e com ela doze pães, e vai disser isto àquela mulher pobrezinha e enferma, que o médico que cuida dela vai te mostrar:
8 O homem pobre a quem emprestastes este manto te agradece pelo empréstimo do manto que lhe fizeste; pega o que é teu”.
9 Ele foi e falou tudo como o bem-aventurado Francisco tinha dito.
10 Mas a mulher, pensando que estava sendo enganada, disse-lhe com medo e vergonha: “Deixa-me em paz, não sei do que falas”.
11 Mas ele colocou o manto e os doze pães na mão dela.
12 Quando a mulher viu que estava falando a verdade, recebeu-o com tremor e agitação do coração e, com medo de que lhe tirassem, levantou-se ocultamente de noite e voltou alegre para sua casa.
13 O bem-aventurado Francisco tinha até dito ao seu guardião que, enquanto estivesse lá, fizesse-lhe os pagamentos por amor de deus.
14 Por isso, nós que estivemos com o bem-aventurado Francisco damos testemunho dele, que era de tão grande caridade e piedade em sua saúde {e enfermidade] não só com seus frades mas também com os pobres, sãos e doentes.
15 A ponto de dar aos outros, com muita alegria interior e exterior, o que era necessário a seu corpo, e que os frades às vezes adquiririam com muita solicitude e devoção, agradando-nos primeiro para que não ficássemos perturbados, mas tirando do seu corpo ainda que lhe fosse muito necessário.
16 E por isso o ministro geral e o guardião mandaram-lhe que não desse sua túnica a nenhum frades, sem sua licença;
17 porque os frades, pela devoção que lhe tinham, às vezes pediam e ele dava na mesma hora.
18 Ou então, ele mesmo, vendo algum frade enfermiço, ou mal vestido, às vezes dava-lhe a túnica, às vezes dividia-a e dava uma parte, guardando a outra parte para si, porque não usava nem queria ter a ser uma única túnica.
Capítulo 90
1 Daí que em certo tempo, quando ia pregando por certa província, aconteceu que dois frades franceses se encontrassem com ele e receberam dele a maior consolação.
2 Mas no fim pediram sua túnica, “por amor de deus”, por devoção.
3 Ele, assim que ouviu falar em amor de Deus, despiu a túnica, ficando despido por cerca de uma hora.
4 Porque era costume do bem-aventurado Francisco, quando alguém dizia: “Dá-me a túnica ou o cordão por amor de Deus”, ou outra coisa que tivesse, dava na mesma hora, por reverência àquele Senhor, que é chamado de Amor.
5 Até ficava muito aborrecido e repreendia os frades quando os ouvia falar no amor de Deus por qualquer coisa.
6 Pois dizia: “Tão altíssimo é o amor de Deus, que raramente e só em grande necessidade deveria ser nomeado com muita reverência”.
7 Mas um deles despiu sua túnica e lha deu.
8 Pois muitas vezes ele sofria muita necessidade e tribulação por causa disso, quando dava sua túnica ou uma parte dela a alguém, porque não podia encontrar ou mandar fazer outra tão depressa.
9 Principalmente porque queria sempre usar e ter uma túnica pobrezinha, de retalhos, e algumas vezes queria que fosse remendada por dentro e por fora.
10 Porque raramente ou nunca queria ter ou usar uma túnica de pano novo, mas adquiria de algum frade a sua túnica, que tinha usado por muitos dias, e também às vezes recebia de um frade uma parte da túnica e, de outro, outra.
11 Mas às vezes remendava-a por dentro com pano novo por causa de suas muitas doenças e friezas.
12 E manteve e observou esse modo de pobreza em suas roupas até o ano em que migrou para o Senhor.
13 Pois poucos dias antes de sua morte, porque era hidrópico q quase todo ressecado, e por causa de muitas outras doenças que tinha, os frades fizeram-lhe diversas túnicas, para poderem trocá-las de dia e de noite, quando fosse necessário.