Nenhum sub-capítulo encontrado

Publicado em italiano sob o título: “Inculturare la minorità”, em L. PADOVESE (ed.), Minores et subditi omnibus: Tratti caratterizzanti dell’identitÅ francescana, Atas do Congresso celebrado em Roma, 26-27 de novembro de 2002, Ed. Collegio S. Lorenzo da Brindisi, Roma 2003, pp. 445-456.

(LUÍS OVIEDO, OFM)

O termo “inculturação” evoca, em primeiro lugar, a necessidade de relacionar a mensagem cristã com a cultura do práprio ambiente, para que essa mensagem seja mais compreensível e significativa. Trata-se de uma missão consubstancial à teologia, que nasce e existe para fazer inteligível a fé em qualquer contexto, em todo tempo. Em um sentido mais restrito, a idéia de inculturação indica uma opção precisa e um programa consciente de adequação dos núcleos da fé e da präxis cristã ao contexto cultural em que se propãem, o que exige prestar atenção às condiçães ambientais cambiantes, conforme nos movamos entre os diversos lugares e tempos, ou tenhamos que nos orientar para minorias que povoam regiães diversas. Nessa perspectiva à oferta teolágica não poderä ser a mesma em Espanha e nos Andes, na Alemanha e na Índia. Além disso, parece que uma obrigação da teologia é integrar os elementos culturais que são gerados no curso da historia, para fazê-los práprios e recriä- los dentro da tradição cristã. A proposta de fé evangélica sente-se assim enriquecida e fecundada, podendo expressar-se em termos novos e mais adequados.

No segundo caso nos encontramos diante de uma estratégia teolágica e pastoral especialmente moderna, embora fundada no princípio de encarnação, um princípio que, entre outras coisas, reivindica à capacidade da fé de assumir e fecundar as diversas expressães culturais, sem anular seu práprio valor. Na base desta posição hä um respeito profundo pela pluralidade cultural e a riqueza implícita nela. Esse “respeito” jä constitui uma “primeira inculturação”, um modo de assumir e de reconhecer o ambiente no que nos movemos.

O programa apenas descrito não é algo descontado. De fato, registram-se muitas dúvidas a respeito, em especial no que diz respeito às possibilidades e aos limites do projeto. Para começar, não se podem garantir os resultados e, sá para colocar uma objeção, é preciso tomar cuidado para não diluir as convicçães fundamentais da fé no esforço de sair ao encontro das exigências culturais. Então, parece inevitävel uma certa “negociação” ou “trade-off”, como dizem os ingleses, que leve à exigência de provar na prätica os diversos intentos de inculturar a fé. Também neste caso, ao aceitar essa premissa, dä-se um passo a mais na mentalidade “inculturizadora”, isto é, a teologia se penetra um pouco mais nas condiçães bäsicas de nosso ambiente cultural, que, entre outras coisas, exige uma negociação constante de quase todas as suas präticas e registros.

O conceito de minoridade, que atrai nossa atenção, levanta problemas específicos a nossos esforços de inculturação, porque, diferentemente de outros traços da vida cristã ou de suas propostas espirituais, mostra níveis de contraste bastante mais elevados a respeito dos contextos característicos das sociedades avançadas, onde é mais urgente a tarefa da inculturação. Por isso convém fazer as contas com uma distinção necessäria: entre traços da fé e da präxis cristã mais facilmente “inculturäveis”, e traços mais resistentes a toda forma de síntese cultural. Esta distinção é bastante útil na hora de estabelecer as estratégias mais adequadas e de recordar a presença de alguns núcleos de identidade diferenciada e resistentes a uma cultura demasiado homogenizadora. De qualquer forma, a questão da minoridade, que desejamos que tenha alguma relevância cultural, oferece um magnífico “caso de estudo” para verificar a teoria e a präxis da inculturação.

O passo seguinte em nosso itinerärio consiste em recordar que hä fundamentalmente duas estratégias ou formas de referir as propostas da fé ao ambiente cultural: a primeira leva mais para a síntese ou o encontro, trata de aproveitar características comuns, e destaca os pontos úteis, ou ao menos complementares, para ambas partes; e a segunda assume o valor provocativo do contraste, a dialética e o paradoxo; nesta segunda orientação a fé se torna significativa precisamente por sua novidade e por seu caräter não assimilävel a toda cultura humana. é bom recordar que estas duas variedades são praticamente “tipos ideais” e extremos, e que é fäcil encontrar “versães intermédias”.

Basta mencionar as conhecidas propostas formuladas por Richard Niebuhr, em Cristo e a cultura, e mais recentemente por outros teálogos, como Hans Frei.1 Todos eles tratam de classificar a pluralidade de opçães que temos à disposição na hora de referir a fé à cultura. Por agora, temos que nos contentar com os casos mais notários para construir nossa reflexão.

A “minoridade” pode, em primeiro lugar, aproveitar as diversas possibilidades que oferecem algumas culturas atuais nas sociedades avançadas, para mostrar sua relevância e conveniência, e mesmo para atualizar a prápria linguagem, o práprio estilo, chamado a assumir um tom claramente “contemporâneo”. De fato, é fäcil detectar problemas e necessidades que emergem em tempos recentes e convidam a uma mudança de atitudes. São muitos os que hoje reconhecem que uma forma de vida mais pobre e que renuncia às pretensães da carreira ou do êxito, simplifica muito a existência e, consequentemente, torna-a mais serena e “bela”. O programa que propunha Schumacher hä vinte e cinco anos em seu livro Small is beautiful (“O pequeno é bonito”) constitui um dos exemplos mais claros.2 O livro foi reeditado recentemente – um sintoma de sua atualidade – em conexão com a sensibilidade anti-globalização e com certos imperativos de uma cultura que se move entre a alternativa e a integração na “grande matriz” cultural de nosso tempo.

Não é difícil vislumbrar as virtualidades que oferece esta “nova cultura” o os “novos movimentos de protesto” para uma inculturação do programa franciscano de minoridade: em uma sociedade estressada, do afã, da competição, e do desenvolvimento ilimitado, propãe-se um caminho mais sereno, simples e gratuito, um sentido da vida que favorece a comunicação, a abertura aos outros, a acolhida desinteressada, a alegria das coisas pequenas, a proximidade dos irmãos e irmãs, percebidos não como concorrentes, mas como pessoas que devemos servir. Hä muitos aspectos que podem ser aproveitados dentro de um programa genérico de “redução da complexidade” da existência pessoal e social, a través de um estilo de vida “menor”: antes tudo, trata-se de uma aposta pelo fim de toda forma de colonização dos outros; uma proposta de libertação autêntica de muitas ânsias e desejos induzidos através de certos circuitos perversos, como a publicidade e as mensagens da media; uma colocação distante e crítica em relação a alguns aspectos da vida social que é melhor não compartilhar; uma aproximação a culturas mais vigorosas e exemplares; um espírito menos agressivo, mais pacífico, que sabe poupar energia e meios... Trata-se definitivamente de um “estilo de vida” que pode ser assumido também como programa de “vida cotidiana” de inspiração franciscana.3

Apesar de tudo que foi dito, precisamos ter consciência de que a proposta franciscana de minoridade apresenta perfis muito mais duros e difíceis de “inculturar”. Um dos mais ábvios é seu vínculo consubstancial com a obediência: acontece que, no programa franciscano, e também evangélico, a minoridade exige a disposição de obedecer e de sacrificar a prápria vontade. Toda uma tradição espiritual nos adverte contra à falsa minoridade de quem mantém uma posição íntima de auto- afirmação, mesmo sendo observante e virtuoso no resto. Neste ponto, não podemos concordar: não é fäcil construir pontes o marcar zonas de intersecção neste tema com as culturas contemporâneas. Estamos diante uma espécie de “núcleo duro” da minoridade. No mäximo, o tápico franciscano da minoridade iria ao encontro de algumas inspiraçães da recente filosofia da “inter-subjetividade” que postulam um proposição de radical passividade diante do “outro” (Levinas), mas certamente, um punhado de filásofos não fazem uma cultura. Não existe, pelo que sei, uma “cultura da obediência”, nem integrada nem alternativa, mas é certo que existem diversas culturas da desobediência”.

Diante desse estado de coisas, sá podemos experimentar a “estratégia B”: a que aponta para o significado cultural a partir do contraste ou da novidade. Recentemente, foi o teálogo inglês John Milbank com seus seguidores da “Radical Orthodoxy”, quem mais insistiu nesse caminho. Os autores citados consideram que o único modo que nos sobra hoje reivindicar o sentido do anúncio cristão consiste em apresentä-lo como “estranho e inaudito”, como diz o título de um de seus livros: The Word Made Strange. Nesse mesmo sentido pode soar estranho e novo o convite para assumir uma proposição de obediência evangélica e de disponibilidade para o outro.4

Temos que ir adiante: também em outros níveis se propãe o contraste cultural quando se leva a sério o programa da minoridade: como renúncia, como espírito de serviço e rebaixamento, como vontade de negação de si mesmos. O poder da kénosis, que estä intimamente vinculado ao espírito da minoridade, o estilo de vida que nasce da “cruz”, são idéias declaradamente estranhas, quase por definição, em nossa cultura, e mais ainda, em qualquer cultura. Se as levarmos a sério, subverte-se a ordem das coisas que se apáia sobre um esquema de afirmação, não de negação. Torna-se difícil “negociar” estes aspectos do espírito franciscano e, em definitiva, do espírito evangélico, especial- mente quando se leva em conta a trama que compãe os modernos sistemas sociais, suas dinâmicas e exigências, sua tendência geral para a afirmação, e não para a auto-negação ou auto-restrição.

De todos os modos, precisamos ser cuidadosos ao considerar o contraste para não exasperar demasiado as coisas. A experiência vivida, assim como o aprendido na historia, nos obrigam a ser mais realistas ao propor e levar a termo um programa demasiado radical. Convém reconhecer alguns limites ao respeito, pois o programa da minoridade, se se identifica com o da kénosis e assume um tom radical, pode desembocar em posiçães exageradas e, em definitiva, impossíveis, típicas dos ideais de formato puro, repetidamente rechaçados pela Igreja. Não nos esqueçamos, ao menos em principio, que a kénosis não é um suicídio, ou que o auto-rebaixamento estä em função de uma dinâmica que aponta no sentido oposto: de exaltação. No parece justa então a pretensão de inculturar um ideal impossível, e ademais pouco cristão. O aproveitamento da dinâmica de contraste cultural não pode ir além de um certo limite, e é bom lembrar isso para evitar equívocos ou a proposta de projetos nada realistas. Pelo menos para nás catálicos, a capacidade de diälogo com a razão e a cultura não é um dado secundärio, pois pertence à verdade da mensagem evangélico, o que significa, em outras palavras, que as propostas da fé e seus modelos de vida não devem ser levados até o absurdo.

Infelizmente, é preciso observar, pelo menos em benefício do inventärio, que hä algumas formas de inculturar a minoridade desenfocadas e negativas, especialmente quando se produzem exageros que apontam no sentido apenas indicado: em algumas ocasiães, ser menores se identificou com uma chamada ao anonimato, quase a desaparecer do horizonte cultural e social, uma atitude de silêncio e timidez que em realidade escondeu à incapacidade de compromisso mais sério e a falta de convicçães fortes. Ainda mais, os tempos recentes foram testemunhas de tendências degenerativas da virtude da minoridade que se manifestaram na forma de falta de afeto – para dentro – e em complexos de inferioridade – para fora – que se manifestaram em atitudes concretas de alguns religiosos, especialmente entre os jovens. Testemunhamos uma tendência, geralmente inconsciente, que deduz que se somos verdadeiramente os últimos, então nossas instituiçães e presenças serão sempre as piores: nossas universidades, colégios, paráquias e missães estarão aträs das de outras realidades eclesiais. Não é justo! Jä estä na hora de superar essas orientaçães para poder encarnar a minoridade de forma decidida, mas sem ameaçar a sobrevivência do projeto franciscano.

Considero oportuna neste contexto uma segunda advertência: é preciso evitar uma ingênua combinação dos dois modos de inculturar a minoridade que acabamos de descrever: como forma de solidariedade ou de protesto, e como obediência e submissão. Trata-se de duas semânticas opostas, de dos projetos diversos, e deveríamos ser conscientes disso. A via do protesto é a da reivindicação e da afirmação; a kenática é o caminho da renúncia e da negação de si mesmos. Provavelmente vai ser preciso escolher, mas não me parece que seja possível neste caso manter “o melhor de dois mundos possíveis”: o da tradição reivindicativa moderna e o da tradição ascética cristã.

A vontade de pêr em prätica o valor ou ideal da minoridade levanta outros problemas, especialmente na comunicação entre pessoa e instituição. Por isso vão ser as aplicaçães präticas e não as declaraçães ou os documentos que vão poder verificar o alcance real do programa evangélico. Quanto a isso, tenho a impressão de que o problema mais grave que se arrasta desde as origens franciscanas reside na dificuldade de combinar as exigências evangélicas com a sua radicalidade, e as institucionais com o seu realismo e pragmatismo. Nas narrativas das origens jä se percebem sinais do conflito, e não é difícil individuar fragmentos nos Escritos e Biografias que descobrem Francisco em forte tensão com os condicionamentos institucionais, as exigências da missão organizada e a estabilidade. é seguro que ele foi o primeiro que percebeu a dificuldade vinculada à inevitävel dinâmica da institucionalização, quase uma espécie de “preço a pagar” (segundo algumas leituras) para salvar e tornar a “experiência franciscana” funcional em diversos setores.

é preciso recordar que as instituiçães têm vida prápria, algo que muitas vezes foi ignorado: ou acontecem ou não acontecem; é preciso excluir que sejam “maiores” ou “menores”. As instituiçães requerem estabilidade, um certo nível de adesão e de reconhecimento ou legitimidade; mas também precisam de estatutos, uma forma organizada, assim como de medidas de contenção e de disciplina contra os aproveitadores, previsães para assegurar sua sobrevivência e reduzir as margens de contingência, e, por último, devem situar-se dentro de uma rede espessa que as liga com outras instituiçães eclesiais e civis. Trata-se de algumas características que não combinam muito bem com o “espírito de minoridade”.

O problema é bastante agudo; assume às vezes a forma de dilema; e jä deu motivo para diversas tentativas de solução teárica e prätica. Esse problema pode ser formulado nos seguintes termos: como inculturar um ideal tão refratärio e pouco realista diante das exigências institucionais, isto é, contraproducente e anti-operativo, quando se busca a eficäcia na missão. Algumas respostas são: a fármula da “hipocrisia organizativa” de Brunsson; a função da semântica a respeito da instituição em Luhmann; a distinção entre os níveis pessoal e institucional; a aplicação do modelo da “opção racional” de Stark, que inclui um cälculo total de vantagens, também de tipo transcendente; e a criação de um práprio âmbito cultural capaz de valorizar as propostas cristãs.

1. A tese de Brunsson é muito simples: toda organização conhece diversos tipos de exigências; as duas principais são: de produção (também de valores simbálicos) e de legitimação.5 Dado que cada uma de elas estä presidida por uma lágica peculiar, surge amiúde uma disparidade nas estratégias da organização, que se resolve em geral de modo não coerente: por uma parte se requer eficiência e bons níveis de produção; por outra se espera que a organização projete uma boa imagem em um ambiente amiúde hostil e suspeitoso. A chamada “hipocrisia”, não em sentido moral, mas técnico, surge quando a retárica que se oferece vai em sentido oposto às präticas ou decisães que se adotam. A primeira serve para legitimar e justificar; as segundas para produzir a sério, para criar valor. Parece que, ampliando muito a visão, todas as instituiçães se vêm afetadas por essa forma de divisão interior. Também a vida religiosa conhece certamente a diferença entre as declaraçães programäticas e as realizaçães concretas, especialmente porque seu programa tende bastante ao maximalismo e à radicalidade (ao menos verbal), o que leva a inevitäveis incoerências e rupturas quando se leva em conta as realizaçães concretas da vida consagrada.

Talvez seja este um dos motivos que explicariam a insatisfação de inteiras geraçães de franciscanos diante das instituiçães, assim como a nostalgia das origens com seu frescor e espontaneidade sem complicaçães, um traço que se associa a todo um “gênero narrativo” e a uma espécie de “mito das origens”, em contraste com a complexidade e as acomodaçães posteriores. Aceitar as instituiçães, a única via para à inculturação efetiva de um carisma, significa ter que fazer as contas com os dilemas e paradoxos apenas descritos. Não obstante, uma coisa é assumir certos níveis imprescindíveis de tensão entre os discursos por um lado, e as estratégias efetivas por outro, e outra coisa é abusar dessa tensão, e então a hipocrisia não é sá uma inevitävel situação de conflito interno, mas passa a ser cinismo. Poderíamos contar alguns episádios da historia antiga e recente das Ordens franciscanas como exemplo dessa deriva. As vicissitudes em torno da discussão sobre a pobreza no século XIV, às vezes pouco edificantes, constituem todo um caso de “simulação retárica e jurídica”, quando era preciso prestar contas com as necessidades estruturais de uma organização de religiosos de certas dimensães, e que pareciam contradizer a letra e o espírito da Regra franciscana.

De todos os modos é bastante difícil evitar a divisão. Recorre-se a uma retárica bela e ambiciosa sobre a minoridade, mas as instituiçães e as estruturas que a encarnam aparecem aos olhos de muitos como antípodas do que é proclamado pelos documentos e as diversas exortaçães. As exigências realistas das instituiçães favorecem algumas formas de inserção e de presença que com o tempo se tornam cada vez mais estäveis e consistentes, de acordo com uma espécie de “norma evolutiva”, que seleciona as estruturas melhor adaptadas. Não parece que nos últimos anos, a pesar das muitas declaraçães de boas intençães, tenham diminuído a diferença e tensão indicadas; ao conträrio, muitos podem ter a impressão de que quanto mais se fala, por exemplo, “de opção preferencial pelos pobres”,

como uma expressão de minoridade, mais se torna patente o contraste com as estruturas e meios que servem para levä-la à prätica. A situação convida à uma recolocação, ou dos discursos, ou das formas institucionais, um conflito que ainda parece longe de estar resolvido.

2. Uma segunda visão do problema usa as distinçães propostas por Niklas Luhmann em sua teoria dos sistemas sociais. Haveria muitos pontos interessantes a aproveitar, mas hä um particularmente importante: o que se refere à virtualidade das semânticas religiosas para abrir o espaço da comunicação, o que torna possível a experimentação e as mudanças, as variaçães e as novas seleçães. Dä a impressão de que se não houvesse um certo desnível, o “salto” entre os discursos que interpretam a realidade e a prápria realidade, não haveria possibilidade de progresso, nem se registraria nenhuma ampliação dos marcos dos sistemas sociais, e menos das realidades eclesiais. Por conseguinte a tensão entre discurso e instituição é necessäria, e até pode ser criativa, com a condição de que abra verdadeiramente os referidos espaços e procure novas variaçães e seleçães.6 Dä a impressão de que nos últimos anos houve diversas variaçães, embora tenham sido selecionadas bem poucas, e que praticamente nenhuma conseguiu se “re-estabilizar” para dar origem a um novo marco institucional, ou o que poderíamos chamar de uma “reforma”. Tal percepção parece indicar um déficit nos processos de inculturação da minoridade franciscana em curso, um motivo que convida à levar a cabo uma certa revisão, não sá das experiências realizadas como também da semântica usada no curso dos últimos anos.

A fecunda produção de Luhmann nos convida a aproveitar outra de suas inspiraçães. O sociálogo alemão foi um dos que indicaram os aspectos positivos do caräter “contra-adaptativo” (maladaptive, counteradaptive) de muitas formas religiosas no presente.7 De fato, uma das chaves que poderia devolver significado a um subsistema social em declive, como é a religião, é precisamente sua capacidade de aproveitar as margens do sistema social, e até mesmo de subverte-los. Esse processo acontece de värias formas: em nível cognitivo, porque a religião vive na sombra, ou melhor “da sombra”, que deixa cada modo de conhecer, com sua necessäria exclusão do “não saber”, do desconhecido, mas que continua reclamando um “nome” ou uma “designação”; em segundo lugar, em nível sistêmico, porque aproveita à contingência residual ou que nenhum outro sistema é capaz de dirigir; e, terceiro, em nível mais empírico, porque consegue integrar no sistema social grupos e populaçães marginalizadas que não têm nenhuma outra possibilidade de “comunicar na sociedade”. A conclusão é que a religião como sistema social não pode deixar de ser de alguma forma “marginal” e contra-adaptativa”, e o são ainda mais alguns de seus segmentos, pelo que a dinâmica descrita se prolonga ainda mais. Tudo isso tem uma aplicação em nosso nível, isto é: a minoridade poderia representar um limite, tanto semântico como prätico, dentro da necessäria e positiva tensão religiosa com seu práprio ambiente. Em termos menos abstratos, a forma franciscana de assumir a radicalidade evangélica e suas limitaçães institucionais, seria o marco sob o qual alguns traços de negatividade podem transformar-se em um discurso positivo, alcançar um significado social, e de este modo, tronar relevantes aquelas expressães da debilidade, da renúncia e do sacrifício, que nenhum outro cádigo social consegue apresentar como positivo: sá o “cádigo cristão”. E talvez seja precisamente esse caräter paradoxal e contra-adaptativo, o que torna relevante o cádigo religioso, e reivindica a mensagem evangélica.8

3. Um terceiro modo de enfrentar o problema consiste em distinguir claramente entre o nível institucional e o pessoal. Trata-se de um recurso que nos é familiar, pois conhece certa historia e ainda tem sua atualidade. De forma muito simples, exige-se dos indivíduos um certo estilo de vida e uma vocação à minoridade; mas essas mesmas condiçães não se estendem a outros níveis, às instituiçães, onde predomina uma lágica bastante diferente. Os estudiosos da “teoria das instituiçães” e em particular os chamados “neo-institucionalistas” jä advertem hä muitos anos sobre a particularidade destas formaçães sociais. Em primeiro lugar, não funciona a analogia entre a institução e o individuo, porque este último age de forma mais o menos razoävel e previsível, com certa lágica. As instituiçães, em vez, distanciam-se em suas expressães do esquema de atuação racional, e podem até parecer “irracionais”. As instituiçães, também as religiosas, têm em general uma vida mais prolongada, tornam-se rígidas para fazer frente às contingências e às emergências que se apresentam; e tendem a ser auto-reprodutivas e a favorecer os comportamentos estandardizados, mesmo quando deixam de ser “razoäveis”.9 Em conseqëência, todo processo de institucionalização deve aceitar algumas condiçães que impedem projetar em nível de toda a organização as opçães práprias dos indivíduos, ou os projetos ideais que eles encarnam. Jä São Francisco agia às vezes como sociálogo quando admoestava os frades sobre as conseqëências ligadas à posse de bens e estruturas, que devem ser defendidos, com armas ou advogados. O realismo das geraçães posteriores ha levou a uma maior flexibilidade e a uma aceitação das “regras do jogo”, amiúde em contraste com a lágica da minoridade, quando se assume em um sentido radical.

Uma tentativa de resposta diante do destino apenas descrito, e que pode provocar desânimo, é a notária distinção entre exterioridade e interioridade, onde o que conta não são tanto as estruturas, ainda que necessärias, mas a capacidade de interiorizar a mensagem evangélica o os compromissos da vocação franciscana por parte dos irmãos. Aqui reside, segundo alguns, a verdadeira oportunidade para inculturar a minoridade e, em general, o espírito franciscano. é aí que se deve colocar a ênfase, sustentam alguns autores, e deixar de lado as estruturas e os esquemas que se referem mais à visibilidade e às formas externas. Apesar da boa vontade, não parece que essa “via” tenho dado mostras de eficäcia, pelo menos até agora. Ese modelo corre o risco de tender a formas de purismo, que jä foi criticado hä alguns anos pelo intelectual catálico francês Jean Guitton, por causa da tendência que apresentam de descuidar dos aspectos da vida cristã que requerem certo grau de “impureza” (como as instituiçães eclesiais, por exemplo); os puristas costumam fugir dos compromissos e negociaçães com aspectos da realidade ou mediaçães que com o tempo não vão poder ser ignorados, o que os leva a posturas insustentäveis.10 O outro risco consiste em sacrificar a dimensão de “visibilidade” da vida religiosa, que requer amiúde mediaçães institucionais. Acentuar a dimensão pessoal à custa da instituição provocarä um déficit que pesa sobre as possibilidades reais de inculturação, uma dinâmica que não pode ficar confinada nos limites da pura interioridade. As conseqëências dessa aposta podem ser observada nas estatísticas das entidades franciscanas nas últimas décadas, uma constatação que leva à refletir sobre as apostas institucionais que estamos chamados a realizar, o sobre a revisão dos marcos institucionais que arrastamos.11

4. Outro caminho a percorrer é o que ser de axiomätica da “opção racional”. De acordo com alguns sociálogos como Rodney Stark e Roger Finke, que estudaram de certo muitas instituiçães religiosas, o problema estä mais em identificar o quadro racional que guia à opção religiosa, seja por parte dos indivíduos (a parte da demanda) como das organizaçães religiosas (parte da oferta).12 Essa característica participa dos traços comuns de toda forma racional: cälculo de vantagens e lucros, poupança de custos, possibilidade de modificar as opçães, necessidade de negociar... O específico da racionalidade religiosa é a anälise de um valor simbálico, isto é, intangível, gestionado pelo “setor religioso”, e que poderia ser identificado com os “bens transcendentes” ou “escatolágicos”. Entretanto, estä bastante claro que na administração de tais “bens” se entrecruzam interesses que têm que ver com outros bens, de caräter material ou de caräter afetivo. A questão é como pode propor uma instituição religiosa e sua oferta em um contexto de constante negociação. Em nosso caso, e descendo da teoria à aplicação prätica, a coisa parece bastante clara: sá se a proposta que oferecem as Ordens franciscanas consegue sublinhar seu valor especificamente religioso, e pode compensar os sacrifícios e as renúncias a outros tipos de valores, sá então, a instituição pode justificar também suas estruturas, materialidade, limitaçães värias e mesmo as paradoxais a que nos referimos. Pois bem, tal estratégia requer que se acentuem alguns aspectos, como por exemplo a clara, embora paradoxal, “superioridade” da opção pela minoridade, no que pode chamar-se uma espécie de “transferência semântica”: o que é percebido como menor e desprezado no cádigo mundano (São Francisco também falou isso em seu Testamento), passa a ser grande e precioso no cádigo da transcendência e do Reino de Deus.

O problema, na perspectiva agora assumida, é a desvalorização feita pelos práprios religiosos dos bens que ofereceriam, precisamente em nome de uma melhor inculturação. A teoria da “opção racional” indica uma via diferente, a de re-valorizar as práprias opçães no cádigo que lhes é mais práprio: o da transcendência. Se, pelo conträrio, se intenta ser menores em tudo, também na qualidade do práprio seguimento evangélico, na comparação com outras opçães cristãs e humanas, então se termina enredados em situaçães absurdas e autodestrutivas, como ocorre por exemplo ao perder o sentido de excelência da vida consagrada respeito de outros caminhos de vida cristã, sem deixar de exigir renúncias comparativamente muito maiores. Sá ao distinguir e reivindicar o valor das opçães evangélicas, se pode proceder a uma verdadeira inculturação das mesmas. A instituição pode ter um papel importante nisso: como mostrou a contribuição de José Buffon,13 ela pode “institucionalizar” certos valores, tornando-os significativos e visíveis, e comunicando a seus membros um sentido de excelência. A semântica criada em outros tempos em torno à pobreza, qualificada com o recurso a superlativos, como “altíssima” e “santíssima”, é um indicio da capacidade para oferecer um cádigo de excelência em grau de motivar e animar a quem deve realizar opçães evangélicas difíceis e nelas perseverar.

5. Por último, é bom recordar um principio que deve presidir as relaciones entre oferta religiosa e contexto cultural: uma boa inculturação não implica que a fé cristã ou as opçães de vida evangélica sejam consideradas como meras “variäveis dependentes” dentro de um esquema em que o ambiente cultural assume o caräter de uma constante que determina todo o resto. Una visão desse tipo é muito parcial; de muitos pontos de vista jä se demonstrou a capacidade de elementos singulares ou de determinados sistemas, de mudar as condiçães do práprio ambiente, de “subverter seu contexto”. A minoridade não é inculturizada sá por sua habilidade para se adequar a certas condiçães ambientais ou por sua capacidade de assumir novas categorias ou tendências, mas por sua prestação de influir no ambiente e de criar cultura, quiçä “menor”, mas significativa. O desafio pode ser expressado nestes termos: em que medida se consegue criar um “capital simbálico” que sabe apreciar um valor nas expressães da minoridade? ou em outros termos: (se pode imaginar um “mundo possível” no qual se invertam uma série de valores, quiçä dentro de uma determinada rede de instituiçães eclesiais?

As indicaçães dos teálogos da “Radical Orthodoxy” parecem bastante úteis quanto a isso, quando se trata de inverter o esquema cognitivo que domina um ambiente social inteiramente secularizado. Nesse sentido é preciso redescobrir o valor das instituiçães religiosas, como geradoras, através de instrumentos de formação e outros, de um marco cognitivo diverso, em que se afirma outra semântica, e em que a minoridade adquire um sentido pleno, porque a realidade é lida em uma clave distinta do resto do mundo; e porque se gera um determinado imaginärio coletivo, quiçä uma “contracultura”. Entretanto, essa “nova cultura” deve poder ser acolhida e compreendida dentro dos limites das instituiçães religiosas. Este é o desafio para nossa geração: olhar a cultura ao nosso redor sem complexos; confrontä-la com uma cultura diferente, com capacidade de vencer a aridez secularizante e de criar valor com a ajuda da graça.

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

1 H. RICHARD NIEBUHR, Christ and Culture, Harper & Row, New York 1951; Hans FREI, Types of Christian Theology, Yale Univ. Pr., New Haven-London 1992.

2 E.F. SCHUMACHER, Small is Beautiful: Ecomomics as if People Mattered, Hartley & Marks 1999.

3 Um exemplo é oferecido no pequeno ensaio de J.A. MERINO, Visión franciscana de la vida cotidiana, Madrid 1988.

4 J. MILBANK, The Word Made Strange, Blackwell, Oxford 1998.

5 N. BRUNSSON, The Organization of Hypocrisy: Talk, Decisions and Actions in Organizations, John Willey, Chichester-New   York 1989.

6 N. LUHMANN, Die Religion der Gesellschaft, Suhrkamp, Frankfurt A.M. 2000, pp. 244 ss., 270 s.; Organisation und Entscheidung,

Westdeutscher Vg., Opladen 2000, p. 355.

7 N. LUHMANN, “Society, Meaning, Religion - Based on Self-Reference”, em Sociological Analysis 46 (1985) 1.005-1.020.

8 A guisa de exemplo: pouco tempo aträs um político de certa importância declarou que uma posição modesta ou de renúncia a ambiçães e a ocupar os postos mais importantes sá teria sentido “dentro da mentalidade franciscana”, certamente não no âmbito político.

9 J.G. MARCH, “Introduction: A Chronicle of Speculations About Decision-Making in Organizations”, en J.G. March (ed.), Decisions and Organizations, Basil Blackwell, Oxford-NewYork 1988, pp.I-21; P.J. DI MAGGIO-W.W. POWELL, “The Iron Cage Revisited: Institutional Isomorphism and Collective Rationality in Organizational Fields”, em American Socilogica/ Review 48 (1983) 147-160.

10 J. GUITTON, Lo impuro, EDB, Madrid 1992.

11 Parece que em muitos casos o marco institucional em que se move la vida consagrada é o que se arrasta desde meados do síseculo XIX, no período das restauraçães e da profusão de novas fundaçães; esse marco deixou de ser operativo ou de se ajustar às exigências ambientais atuais, trata-se de algo que requer aprofundamento.

12 R. STARK-R. FINKE, Acts of Faith: Explaining the Human Side of Religion, Univ. of California Pr., Berkley-Los Angeles-London 2000.

13 G. BUFFON, “Speculum sumus...”, publicado em Selecciones de Franciscanismo 97 (2004) 63-100.

Selecciones de Franciscanismo 99 (2004) pägs 433-445