FREI KATER VINICIUS DOS SANTOS
RESUMO:A fraternidade é para o carisma franciscano, o valor que distingue dos outros carismas da Igreja. Nos escritos de São Francisco como em suas primeiras biografias se encontram uma densa fundamentação, do amor concreto que ele tinha como ideal e queria que os freis tivessem entre si. Na família capuchinha as Constituições retomam os textos originais de Francisco e os assumem como ideal a ser praticado pelos frades, um amor em ações que superam as diferenças, os pecados e as enfermidades. O sinal que o amor fraterno faz parte do carisma Capuchinho é a manifestação deste valor nos freis que se destacaram por suas vidas na Igreja através da santidade. Através das vidas de São Pio de Pietrelcina e São Francisco Maria de Camporosso é possível visualizar o amor fraterno concretamente praticado no dia a dia.
PALAVRAS CHAVES: Fraterno. Concreto. Francisco. Constituições Capuchinhas.
ABSTRACT: Fraternity is for the Franciscan charism, the value that distinguishes it from the other charisms of the Church. In the writings of St. Francis as in his early biographies are a dense basement, of the concrete love he had as an ideal and wanted the friars to have each other. In the Capuchin family the Constitutions retake the original texts of Francis and assume them as an ideal to be practiced by the brothers, a love in actions that overcome differences, sins and illnesses. The Sign that fraternal love is part of the Capuchin charism is the manifestation of this value in the friars who stood out for their lives in the Church through holiness. Through the lives of St. Pio of Pietrelcina and St. Francis Mary of Camporosso, it is possible to visualize the fraternal love concretely practiced in everyday life.
KEYWORDS: Fraternal. Concrete. Francis. Capuchin Constitutions.
INTRODUÇÃO
Nos escritos de São Francisco de Assis, suas cartas e regras e em suas primeiras biografias, é visível o desejo que teve para os seus filhos, para que eles se compreendessem como Irmãos. A fraternidade, entretanto, não pode ficar estacionada a um conjunto de leis, ela dever ser praticável. Nos escritos de Francisco vê-se as diretrizes da vida fraterna dos frades, e nas primeiras biografias fatos concretos deste amor vivenciado por ele.
Embasada nestes escritos, está as Constituições Capuchinhas, que reproduzem identicamente as intenções de Francisco, dando uma roupagem atual ao desejo que os freis se amassem como família suscitada por um único Pai. Amor que se manifesta no perdão, na caridade, na formação e na convivência.
O objetivo destas fontes é a santificação dos freis. Elas são a apresentação dos valores que distinguem o carisma Franciscano Capuchinho das outras famílias religiosas, que não ficam reduzidos a fraternidade Capuchinha, chegam ao povo, mas que é gerado e nutrido pela vivência deste valor. A Família Capuchinha gerou muitos frutos de santidade, entre eles São Pio de Pietrelcina e São Francisco Maria de Camporosso.
O AMOR FRATERNO IDEALIZADO POR SÃO FRANCISCO PARA SUA FAMILIA RELIGIOSA
São Francisco de Assis, inspirado no evangelho como regra de vida, cumpre na ordem fundada por ele os dois mandamentos mais importantes da lei indicados por Jesus: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” Ele respondeu: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Esse é o amor e o primeiro mandamento. O Segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo."(Mt 22, 36-39). A família Franciscana em verdade é o cumprimento prático destes dois mandamentos, pois assumem a vida fraterna para se oferecerem a Deus. O grande valor que Francisco trás para a vida religiosa é a fraternidade como pede Cristo num amor que não pode terminar em palavras, deve ser manifesto em obras, uma prática vivencial diária.
É possível levantar uma hipótese descuidada sobre o rigor que Francisco queria de seus frades sobre o valor da vida fraterna, considerando que nas regras, bulada e não bulada, não existem sequer um capítulo intitulado, “como viver a vida fraterna”. Entretanto uma observação superficial perceberá que tudo o que Francisco deixou, gira em torno de um binômio, fraternidade-pobreza ou caridade-minoridade.
Na Regra não Bulada, Francisco pensando na grande família Religiosa que a partir dele surgia, não tem medo de advertir os velhos e os novos frades dos perigos que podem encontrar pelas estradas que irão percorrer, perigos que poderiam surgir da vontade de possuir, de se apropriar de bens materiais, afetivos e também dos possíveis conflitos e dissonâncias que podiam ocorrer entre os irmãos.
Todos os Irmãos cuidem-se de não se caluniarem, nem brigarem com palavras, mas antes, empenhem-se em guardar silêncio, sempre que Deus lhes prodigalizar graça. Não entrem em litígio entre si nem com outros, mas procurem responder humildemente dizendo: Sou um servo inútil. Não se enraiveçam, porque todo aquele que se enraivecer contra seu Irmão será réu do julgamento, quem disser a seu Irmão, patife, será réu do sinédrio; quem disser: tolo, será réu do fogo da geena. Mas, amem-se uns aos outros, assim como diz o Senhor: Este é o meu mandamento que vos ameis uns aos outros como eu vos amei (RnB 11,1-5).
Francisco utilizando um tom de repreensão, se apropria das palavras de Jesus, a fonte de suas inspirações, e pede que nestas situações guardem silêncio e se esforcem para não quebrar a unidade, mas que se suportem para amarem como Jesus os amou. Seguindo este princípio os frades deveriam se respeitar acima de tudo. Surgem então entre os primeiros Irmãos uma busca sincera de se perdoarem em caso de dissonâncias ou fraquezas. Esta busca não poderia se reduzir a um simples “me perdoe” deveria se tornar ação concreta de arrependimento.
Um fato peculiar é apresentando por Tomas de Celano, onde relata que um frei de nome Bárbaro ofendeu um outro frade, quando ele percebeu o que havia feito, tomou um pouco de esterco e colocou na boca, para castigar a língua venenosa que ofendeu seu irmão (2C 128, 1-3).
Frei Bárbaro faz-se uma autocrítica imediatamente o ato realizado por ele. Através da observação da reação do Irmão, tomou consciência da magoa do Irmão, e para demonstrar seu arrependimento não mede esforço em realizar uma penitência, contra a sua própria vontade. O gesto do Frei Bárbaro poderia ser um ato isolado, uma ação devido a santidade ou a piedade dele, entretanto Tomas de Celano afirma em seguida; que todas as vezes que um frade ofendia outro frade, o ofensor se prostrava aos pés do ofendido, ainda que contra a vontade, e isso era motivo de alegria para Francisco.
Não pareceria natural que os frades com todo deleite se humilhassem para o Irmão ofendido, mas o faziam contra a própria vontade, e ainda era um costume entre eles, uma forma de recuperar a unidade e a boa convivência desfeito por palavras que perturbavam a paz.
Os irmãos deveriam manifestar o seu arrependimento cada vez que ofendessem uns aos outros, mas Francisco não queria só isso de seus Frades, queria que eles também estivessem preparados para perdoar o Irmão pecador, suportar suas fraquezas e defeitos, e com os olhos, não mostrar repreensão, mas compreensão para atraí-los a unidade dos irmãos e com o Pai. Na Carta a um Ministro Francisco quer que perdoe o pecador e se necessário que o busque e lhe ofereça o perdão.
Assim quero conhecer se amas o Senhor e a mim, servo d’Ele e teu, se fizerdes o seguinte: não haja no mundo Irmão que tenha pecado até não poder mais que, após ver os teus olhos, se afaste sem a tua misericórdia, se misericórdia buscar. E se não buscar, pergunta-lhe se não quer misericórdia (CM 9-10).
O gesto de misericórdia é para Francisco a prova que o Frade ama Deus e ele mesmo. Ele faz com que o Irmão pecador chegue ao estado máximo de ultrapassar a quantidade possível de pecar, ultrapassar a quantidade tolerável de sete vezes por dia. Somente através da nova proposta de Jesus de perdoar setenta sete vezes. "Então Pedro chegando-se a ele, perguntou-lhe: “Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus respondeu-lhe: “Não te digo até sete, mas até setenta sete vezes."(Mt 18, 21-22) , compreende-se o pedido de Francisco de ir além do perdoar, chegando a dar o perdão. Francisco não conseguia conceber a perda de um Irmão pecador, o perdão o iria atrair outra vez para Deus e a Ordem. Ele tem um cuidado todo especial pelo Irmão que peca, sabendo que o pecado é uma realidade entre os homens exorta os outros frades a manterem a discrição sobre o pecado cometido e que não humilhem o pecador, mas tenham misericórdia.
Continuando na Carta a um Ministro, Francisco propõe se um irmão por instigação do mal pecar mortalmente, deve ser levado ao Guardião, e os irmãos que souberem do pecado deste devem te grande misericórdia e tratar o Irmão pecador como quereriam ser tratados se estivessem em situação semelhante, pois não são os sadios que precisam de médico, mas os enfermos.
Francisco observando os frades que vinham para receber esta nova Vida, percebeu a vontade de Deus que inspirou e trouxe cada um. Somente uma instigação do inimigo ou a fragilidade humana poderiam ser motivos da existência do pecado em suas vidas. É por isso que o Irmão pecador descoberto não deveria ser abandonado a própria sorte, mas deveria ser direcionado para o guardião, que o guardaria. Francisco repete o conselho dado na carta em uma de suas admoestações onde exorta que os frades que vendo as fraquezas alheias dos outros Irmãos sejam humildes e pensem como quereriam ser tratados em idêntica situação. “Bem-aventurado o homem que suporta o próximo segundo a sua fragilidade naquilo que quereria ser suportado por ele, se estivesse em idêntica situação” (Ad 18,1).
As fragilidades dos irmãos deveriam ser curadas pela misericórdia dos outros. Eles deveriam ficar sempre juntos no amor, que se manifestava pela vontade de perdoar e oferecer perdão, no respeito das fragilidades morais e espirituais. Por esses Irmãos que se perdoam e se suportam por causa de Deus, Francisco vê a manifestação de Deus. “Deus é amor e quem permanece no amo permanece em Deus e Deus n’Ele” (1Jo 4,16). Ele não mede esforços para que a caridade seja uma realidade concreta entre os Irmãos mesmo que sendo contra a natureza, “E amemos o próximo como a nós mesmos. E, se alguém não quiser amá-lo como a si mesmo, ao menos não lhe faça mal, mas faça-lhe bem (2CF 18)”. Os irmãos que praticam o amor, vontade de Deus são ditosos e benditos. “E amemos o próximo como a nós mesmos. E, se alguém não quiser amá-lo como a si mesmo, ao menos não lhe faça mal mas faça-lhe bem.” (2CF 26-27)
Na vida dos primeiros Irmãos, as penitências, falta de recursos e os árduos trabalhos trariam consequências: as enfermidades. Os Irmãos enfermos deveriam receber cuidados especiais, serem bem tratados. É por eles que Francisco abre uma exceção ao uso do dinheiro tão veementemente proibido por ele. “Mando firmemente a todos os Irmãos que jamais recebam moedas ou dinheiro, por si ou por pessoa intermediária. Para as necessidades dos Irmãos enfermos e para vestir outros Irmãos, tão somente os Ministros e Custódios exerçam solícito cuidado, por meio de amigos espirituais.”(RB 4, 2-3). Não importando onde os Frades se encontrem na Regra não Bulada, diz que os são devem cuidar do enfermo como quereriam ser cuidados.
Se um irmão cair enfermo, seja onde for, os demais Irmãos não deixem sem designar um ou vários Irmãos, se necessário, para que o sirvam como quereriam ser servidos. Mas, no caso de extrema necessidade, podem deixa-lo aos cuidados de uma pessoa que o satisfaça na sua enfermidade (RnB 10, 1-2)
Somente em caso de extrema necessidade os Frades poderiam deixar o Irmão enfermo aos cuidados de outros fora da Fraternidade. O Irmão enfermo não deveria ser visto como um peso para a fraternidade, ele faz parte dela, é um membro que sofre, ainda que faça todo o corpo sofrer. “Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento; [...].”(1Co 12,26). Francisco quer que os irmãos sãos sejam como o bom Samaritano, cuidem o melhor que puderem e não passem, como o sacerdote e o levita, como se o irmão enfermo fosse um peso ou até mesmo um desvio de suas funções normais e importantes de seus ministérios (Lc 10, 31-35).
"Casualmente, descia por esse caminho um sacerdote; viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, atravessando esse lugar, viu-o e prosseguiu. Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão. Aproximou-se cuidou de suas chagas, derramando óleo e vinho, depois colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o á hospedaria e dispensou-lhe cuidados. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro, dizendo: “Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu regresso te pagarei”.
Na compaixão para com os Irmãos enfermos, Francisco deixa um exemplo de extrema caridade, não medindo esforços para providenciar-lhes o necessário para sua recuperação, mesmo com mais necessidades dava os fortificantes que recebia para os outros irmãos enfermos. “Muita era sua compaixão para com os doentes e muita a solicitude pelas suas necessidades. Quando a piedade dos seculares lhe mandava fortificantes, dava-os aos outros doentes, embora precisasse mais que todos.”(2C 175,1-2). “Chegava até a comer nos dias de jejum, para que os doentes não ficassem com vergonha de comer. E não se envergonhava de pedir carne publicamente, pela cidade para dar a um Irmão doente (2C 175,4)”.
A estreita observância causava um pouco de receio aos frades de receberem algum benefício contra a pobreza, que eles livremente optaram em viver. Francisco concebe que a lei por ela mesma aprisiona a vida dos Frades. “Foi ele quem nos tornou aptos para sermos ministros de uma Aliança nova, não da letra, e sim do Espírito, pois a letra mata, mas o Espírito comunica a vida.” (2Co 3,6) , e poderia até impedir a caridade, que nestes casos não seria extraordinária, mas necessária. A rigidez da vida deles, não podia tirar o mais importante o mandamento do amor, em gestos concretos. Francisco observando um enfermo pressupõe um remédio um tanto inusitado e contrário a regra.
Certa vez, estando o Bem-aventurado Francisco no mesmo lugar, havia ali um frade, homem espiritual e antigo na Ordem, que se encontrava muito fraco e doente. O Bem a venturado Francisco, ao vê-lo, comoveu-se de piedade para com ele. Mas, como os frades daquele tempo, enfermos ou sãos, como alegria e paciência tomavam a pobreza como riqueza e em suas doenças não usavam remédios, mas até, de bom grado, faziam o que era contrário ao corpo, o Bem-aventurado Francisco disse a si mesmo: ”Se esse Irmão comesse logo pela manhã umas uvas maduras, creio que lhe fariam bem”. Por isso, um dia, levantou-se de manhã bem cedo, e chamou às escondidas o frade e o conduziu a uma vinha que ficava perto da mesma igreja, e escolheu uma videira em que as uvas estavam boas e saudáveis para se comer. E sentando-se próximo à videira com ele, começou a comer as uvas para que o frade não se envergonhasse de comer sozinho (CAs 53, 1-6).
A caridade está acima de tudo para Francisco, acima das exigências particulares da pobreza e da penitência. Ela acontece pelo simples olhar de Francisco que observando o Irmão supõe o que ele necessita, o que crê que far-lhe-ia bem. A caridade surge necessariamente porque ele viu o Irmão em sua fragilidade e comoveu-se.
Não seria, entretanto, conveniente que a caridade só se manifestasse em caso de enfermidade, deveria ser, uma realidade comum entre os Irmãos. É por isso que Francisco admoesta os Frades neste ponto. “Bem-aventurado o servo que ama tanto seu Irmão enfermo, quando não o pode satisfazer, como quando está sadio e pode satisfazê-lo (Ad 24,1)”.
O amor não deve se reservar somente para alguns momentos especiais, deve ser vivenciado sempre, e manifestado para os santos e pecadores, pobres e ricos, enfermos e sãos, aos homens e para as demais criaturas. Ele não pode ser ofertado, segundo Francisco, com cara feia, mas com honestidade. “Uma vez, viu um de seus companheiros aparentando um semblante abatido e triste, e não o suportando assim, disse-lhe suavemente: “Não convém a um servo de Deus mostrar-se triste e atormentado, mas sempre honesto. Reflete teus problemas em tua cela, chora e geme na frente do teu Deus. Quando voltares para junto dos Irmãos, trata de te conformares com eles, deixando de lado o aborrecimento” (2C 128, 1-3). O conselho de Francisco está ligado ao pensamento de São Paulo de manter um bom entendimento com todos, participando da mesma sorte comum. “Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram.” (Ro 12, 15) , esquecendo-se de si e abrindo-se ao ato de doar-se na vida de cada irmão que se apresenta.
O ideal de Francisco de maneira alguma queria ser um peso na existência de cada Irmão. Ele queria que os Irmãos encontrassem na fraternidade tudo o que necessitavam, que comunicassem suas necessidades com confiança uns aos outros, porque faziam parte de uma mesma família gerada por um único Pai, participantes de uma fé singular e uma herança eterna. “Mas, os frades, com familiares de uma fé singular, estavam unidos pela participação na herança eterna; acima de tudo, ele os abraçava entranhadamente, com todos os afetos.” (2C 172,6) . Na Regra Bulada Francisco evidência que onde quer encontrem-se os Irmãos devem manifestarem entre si familiaridade.
Os Irmãos, em toda a parte e quando se encontram, mostrem-se familiares uns aos outros. E, confiantes, manifestem um ao outro sua necessidade. Pois, se mãe nutre e ama o seu filho carnal, com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir seu Irmão espiritual? (RB 6, 8-9).
O Irmão no ideal de Francisco deve ser amado, com muito mais intensidade que uma mãe ama seu filho carnal. A referência ao amor de mãe colocada na relação entre os freis expressa claramente que este amor “Filia” não é suficiente medida para demostrar o amor que os freis devem ter uns pelos outros. Entretanto Francisco utiliza a palavra mãe na Regra para os Eremitérios para expressar uma função especial. Nela ele expressa que a fraternidade contemplativa tenha duas “mães” e no máximo dois “filhos”, que as mães façam o serviço de “Marta”, o cuidado para que nada falte para os filhos, evitando qualquer coisa que possa-os atrapalhar de serem “Marias”. “Estando em viagem, entrou num povoado, e certa mulher, chamada Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, ficou sentada aos pés do Senhor, escutando-lhe a palavra. Marta estava ocupada pelo muito serviço. [...]” (Lc 10, 38-40) .
Francisco também propõe na Regra para os Eremitérios, que quando parecer oportuno, que os “filhos” troquem de função com as “mães”, para que todos possam trabalhar e rezar. Inverter os papéis na vida fraterna dando oportunidade para todos, não suprimindo os talentos que cada um recebeu, ou, os carismas próprios. É somente pelo amor fraterno do cuidar do Irmão que isso acontece, sem desmerecimentos ou lamentos, mas pela vontade clara de manifestar o amor em atos concretos.
Tomás de Celano na Segunda Vida de São Francisco, trás uma ilustrativa parábola narrada por São Francisco (2C 191, 3-14, 193, 1-4), onde ele para exortar a unidade entre os freis, diz que em um Capítulo Geral onde se encontravam freis letrados e iletrados, são encarregados dois freis para realizarem um sermão, um sábio e um simples.
O Irmão sábio vendo seus confrades não utilizaria palavras cultas por ter certeza que todos os seus irmãos são sábios, então se prepara para o sermão de maneira simples, trajando um vestido de saco com a cabeça coberta de cinza, utilizando poucas palavras. O Irmão simples vendo que o Irmão sábio utilizou a sua ideia prepara-se com alguns salmos que ele conhecia e inspirado pelo Espirito Santo, fala com tanta doçura e sutileza que deixa a todos estupefatos.
Francisco para concluir a parábola afirma que na Ordem, que é uma grande assembleia que reúne pessoas de todas as partes do mundo, os sábios nela captam para seu proveito a devoção dos irmãos simples vendo neles uma busca ardente pelas coisas do Céu e saboreando as coisas espirituais, e que os simples adquirem humildade vendo homens preclaros vivendo de maneira simples rejeitando a fama do século que podiam receber.
A Fraternidade é uma escola, onde cada Irmão transmite ao outro, por palavras ou pela vida, valores e aprendizados. Seja na correção fraterna praticada por amor, seja na caridade manifestada ao enfermo, pelo cuidado, e ao pecador, por perdoar e oferecer o perdão. Francisco propõe entre os Irmãos um amor que seja maior do que o existente entre mãe e filho e baseados por esse amor os freis devem mudar seus papéis. Tudo pela caridade no relacionamento familiar entre eles.
Francisco viveu estes princípios de modo claro, e os apresentou nos seus próprios escritos como também nas biografias que outros escreveram, por todas eles comprova-se o emprenho dele e o desejo que os freis devem ter para praticarem esse amor, que não pode ficar reduzido a meras palavras mortas e nem a esquemas fechados, deve se manifestar concretamente na vida fraterna, passando pelas leis, e visualizando ou a necessidade do Irmão ou sendo também sem necessidade, somente por este Irmão fazer parte de uma mesma família.
O IDEAL FRATERNO DE FRANCISCO NAS CONSTITUIÇÕES CAPUCHINHAS.
Baseados na vida e escritos do Seráfico Pai São Francisco, as Constituições dos Frades Menores Capuchinhos, copiam com clareza as referências dados por ele, como o cuidado com o irmão enfermo (N°92,8), a caridade ao irmão pecador (N°116,1), o respeito entre os frades(N°168,2), a hospitalidade (N°98,1) o amor mútuo (N°89,2), a dedicação de tempo uns para com os outros e a cooperação nos trabalhos (N°94,3) e a partilha lucrativa de dons (N°89,4).
As Constituições evidenciam estes pontos, e estabelecem o fundamento da vida fraterna, que se estabelece no mistério de amor da Trindade, seguido pela encarnação do Filho que se faz o primogênito entre muitos irmãos, fazendo dos homens uma fraternidade através de sua morte e ressureição e mediante o dom do Espirito Santo. Foi o próprio Jesus que ensinou a oração do Pai Nosso, um Pai único e comum, e também disse “Vós todos sois irmãos (Mt 23,8)”.
Francisco por divina inspiração, realizou o desejo de Deus, de levar o amor Trinitário a todos os homens e fez de sua Ordem, uma Ordem de Irmãos.
Reunidos em Cristo como uma só peculiar família cultivemos entre nós relações de fraterna espontaneidade; vivamos de boa vontade entre os pobres, os fracos e os doentes, partilhando de sua vida, e conservemos nossa particular proximidade com o povo. (CONSTITUIÇÕES DA ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 2014, N°5,4)
Membros de uma família peculiar reunida por Cristo, as constituições, não tem um sentido de imposição. Os textos escritos na primeira pessoa do plural, mostram um compromisso assumido por todos. Não existe um único responsável pela sustentação expansão e tradição da Ordem, todos são corresponsáveis por assumirem esta vida e regra. É pela partilha de experiências e de dons que todos os freis são enriquecidos entre si. A vivencia fraterna é sobretudo a escola formadora. “Viver juntos como irmãos menores é o elemento primordial da vocação franciscana. Por isso a vida fraterna deve ser sempre e em toda parte, exigência fundamental do processo formativo (COSTITUIÇÕES DA ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 2014, N°24,7).
Todos os freis se tornam pela convivência diária formandos e formadores uns dos outros. Em cada frei se encontra um professor do próprio carisma com a sua manifestação particular, iluminada pelo Ministro Geral da Ordem que é o Espirito Santo. Assim torna-se extremamente necessário a convivência, os horários comuns de oração e refeição, os trabalhos em conjunto e as recreações fraternas.
As diferenças de idades, devem ser oportunidade de renovação e aprendizado entre os freis mais jovens e mais velhos. As Constituições indicam que os Irmãos mais novos tenham estima pelos Irmãos mais velhos e aprendam de suas experiências, e que os mais velhos acolham as novas formas de vida e atividade ‘e uns e outros comuniquem entre si as próprias riquezas’ (Id. 2014, N°91,3)
Para se manter a tradição Capuchinha e aprimorar de maneira efetiva o carisma, as Constituições, solicitam um contato constante com os escritos e as biografias de São Francisco e também daqueles outros freis que se distinguiram pela santidade de vida (Id. 2014, N°6,2).
Outra forma de se conhecer o carisma, é conhecer a história do surgimento da Ordem Capuchinha, observar a vontade dos primeiros irmãos em viver a regra de São Francisco radicalmente, cuidando do silêncio, oração e contemplação, trabalhando pelos pobres e empesteados. Todas essas características atraíram sobre eles o prestígio popular, e por isso receberam do povo o nome de Capuchinhos. No livro A Ordem dos Frades Menores Capuchinhos traz um retrato de como era visto o Capuchinho no início da reforma:
No seu interior ele aspira à mais pura observância da Regra e das Constituições. No exterior ele resulta uma prédica constante de austera disciplina, zelo incansável e abnegação sem limites; o seu porte e aspecto inspiram simplicidade e nobreza, ele detesta a hipocrisia e sabe demonstrar-se pai e defensor dos humildes. (1948, p. 172).
Os santos Capuchinhos trazem consigo a vivência deste retrato, a vontade da radicalidade à regra com todas as suas consequências, e o cuidado pelo carisma e pela família religiosa. Nestas vidas repletas de um desejo sincero de servir a Deus, se encontra as manifestações de amor na fraternidade, em gestos concretos. Os santos Capuchinhos deram uma nova vestimenta aos atos de amor que Francisco realizou com os primeiros Irmãos. Eles no decorrer dos dias expressaram afetos e ofereceram seus dons para os confrades.
O AMOR FRATERNO CONCRETO EM SÃO PIO DE PIETRELCINA E SÃO FRANCISCO MARIA DE CAMPOROSSO.
Entre os vários santos e beatos da família Capuchinha, destacasse São Pio de Pietrelcina, nascido em 25 de maio de 1887, morreu no dia 23 de setembro de 1968. Pio se apresenta como uma figura repleta de mistério, dons místicos e misericórdia, um grande taumaturgo. Sempre seu nome vem com um tipo de mancha derivado do seu caráter forte e explosivo. Foi um mártir do confessionário e das perseguições provindas dos estigmas que recebeu. Construiu um grandioso hospital para cuidar dos feridos da guerra a “Casa Alívio do Sofrimento”.
Pio trabalhou como diretor espiritual no convento de Santa Maria dele Grazie, neste serviço como nos outros se dedicou com intensidade e generosidade aos confrades.
No convento lhe foi dado uma particular missão: era diretor espiritual dos frades, todos, entregues ao frei. Padre Pio dedicou-se a eles com todo o seu empenho: lá, confessava, teve breve conferência espiritual, rezava por eles, lutava por eles contra o demônio e, conforme sua total generosidade, se ofereceu ao Senhor, vítima, por eles. (AMORTH, 2007, p.34)
O amor de Pio pelos confrades é manifestado pelo trabalho que realiza e pelo oferecimento ao Senhor, como bode expiatório, por eles. As lutas contra o demônio, causaram sem dúvidas para ele grandes sofrimentos morais por parte dos freis, contudo nas biografias escritas pelos que tiveram contato com ele, nunca se apresenta um Pio rancoroso com seus Irmãos.
A caridade anima São Pio, que no dia 26 de março de 1914 faz a seguinte afirmação, “Se sei, entretanto, que uma pessoa está aflita, seja na alma ou no corpo, o que eu não faria junto ao Senhor para vê-la livre de seus males? (PIO, 1914 apud PERONI, 2011, p.46). Essa afirmação não é deslocada da fraternidade onde ele habitou, ela é para os freis como também para o povo.
São Pio quis em sua vida, de modo radical, cumprir as exigências do evangelho. Essa radicalidade dá uma face carrancuda para ele, um frei mau humorado, diferente dos outros santos com faces de piedade. Mas Maria Winowska, que conheceu o frei Pio, trás uma atitude logicamente impossível para as características dele.
Sempre de bom humor, diverte os companheiros durante os descansos com anedotas, francamente espirituosas e até habilidades mais espetaculares, como o “concurso de espirros”, em que decerto não recusaria tomar parte S. Filipe de Néri, o “bobo de Deus — concurso que provocou muitas risadas alegres entre os padres comparsas no jogo(WINOWSKA, 1956, p.196)
Concursos de espirros, mostra uma realidade desconhecida de São Pio, realidade abafada pelos milagres e prodígios, mas que foi real na vida dele, na convivência e partilha dos valores e dons da vida Capuchinha. Estes fatos mostram como era o coração de Pio voltado para os Irmãos. Mesmo repleto de sofrimentos físicos e morais, ele não nega a vida e compromissos fraternos com alegria franciscana.
Uma outra figura reluzente na família Capuchinha, é São Francisco Maria de Camporosso, nascido em 27 de dezembro de 1804, emitiu a profissão religiosa em 1826, em Gênova onde ficou toda a sua vida como esmoler, faleceu no dia 17 de setembro de 1866.
Desde pequeno garantia a sobrevivência de sua família, se distinguindo pelo despojamento de suas coisas. Quando noviço destacou-se pelas manifestações de bondade e afabilidade com os colegas noviços. Após a profissão realizou diversos trabalhos no convento da Conceição (em Gênova) foi cozinheiro, enfermeiro, hortelão, sacristão e costurava os hábitos dos freis, sempre infatigável e sereno. Estes trabalhos garantiam aos outros Irmãos a tranquilidade para realizarem seus trabalhos.
São Francisco Maria destacou-se pelo serviço de esmoler, de tal modo que foi nomeado pelos superiores “Chefe das sacolas”. Pelas ruas de Gênova ouvia a todos e socorria com as esmolas os mais necessitados. Seu trabalho tornou-se uma necessidade para a população de Gênova, e sua fama ultrapassou os muros da cidade. O fato que é a prova de amor de São Francisco Maria, é o oferecimento que faz da sua vida.
Uma epidemia geral na cidade de Gênova moveu-o a oferecer sua vida a Deus diante do altar da Virgem, para salvar o seu querido povo; sacrifício que Deus aceitou, morrendo o esmoler da “Superba” e salvando-se esta do terrível flagelo (A ORDEM DE FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 1948, p.187)
Depois de sua morte, as mortes pela peste de cólera terminaram, entretanto, o povo não se esqueceu do “Padre Santo”, conhecido assim pelas manifestações de afabilidade e paternidade com os confrades e para o povo.
CONCLUSÃO
São Francisco queria que os freis se amassem, se nutrissem e se respeitassem, que a lei entre os irmãos fosse o amor, ultrapassando até os limites da pobreza. Que as diferenças culturais, intelectuais e de idade, não servissem para gerar divisões e conflitos, mas que elas possibilitassem a aprendizagem entre eles, e nem os pecado, por mais grave que fosse, deveria servir de pretexto para ignorar o Irmão pecador, sendo Francisco neste ponto muito claro a pedir que se ofereça o perdão ao pecador para poder atraí-lo a Deus. Nunca abandonando o Irmão enfermo, mas lhe providenciando os cuidados necessários.
As Constituições retomam todos os pontos já apontados por Francisco, mas ela ilumina o papel formativo da fraternidade. Os freis são formandos e formadores sempre uns dos outros, por isso a necessidade dos horários e atividades em comum, que exista interesse real em dedicar tempo para os Irmãos. A exigência de serem Irmãos é várias vezes mencionada, nos textos dentro e fora do capítulo próprio sobre a Fraternidade.
Em São Pio e São Francisco Maria, vê-se o amor fraterno através das atividades que realizaram para os Irmãos, pelo modo que a realizaram. Pio mesmo sendo alvo de desconfiança dos próprios Irmãos, nunca proferiu alguma palavra contra a fraternidade, ao contrário, viveu a vida doada por seus confrades nas missas e nos grandes períodos no confessionário. São Francisco Maria por sua vez, em todos os trabalhos simples que realizou com serenidade e afabilidade, não permitindo que faltasse o pão para os pobres e para os confrades.
Por todos estes exemplos confirma-se a preeminência do amor fraterno entre os freis, que deve ser concreto, que se manifesta no ensino, pelas trocas de experiência, no cuidado pelo irmão enfermo, pela alegre acolhida do Irmão como dom de Deus, tornando esta Ordem, uma Ordem de Irmãos que se amam e ofertam-se a Deus.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A BÍBLIA DE JEREUSALÉM. Nova edição ver. e ampl. São Paulo: Paulus, 2002.
AMORTH, Gabriele. Padre Pio: Breve história de um santo. São Paulo: Editora Palavra e Prece, 2007.
A ORDEM DE FRADES MENORES CAPUCHINHOS. Trad. Luís Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1948.
CONSITUIÇÕES DA ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS. Trad. Conferência dos Capuchinhos do Brasil. Porto Alegre: Estef, 2014.
FONTES FRANCISCANAS. Santo André: O mensageiro de Santo António, 2004.
PERONI, Luigi. Padre Pio: O São Francisco de nosso tempo, 4 ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
WINOWSKA, Maria. Padre Pio: O Estigmatizado. Porto: Editora Educação Nacional, 1956.