O esforço na oração e sua luta com o diabo; a constância na pregação; a abertura do livro, a visão do Serafim crucificado e as chagas de Cristo que nele apareceram.
57.
1 Para tudo que o glorioso pai Francisco se dedicou e fez, o refúgio seguro foi a oração assídua.
2 Pois, ainda que se tenha dedicado com ardoroso zelo ao bem do próximo, também foi muito atento a jamais negligenciar o cuidado por si mesmo na busca de toda a perfeição.
3 Para isso, procurou lugares solitários e morou na imensidão do ermo; e mesmo quando habitava entre os homens, passava as noites sozinho nas igrejas ou em casas abandonadas.
4 Quantos terrores e quantas maquinações do demônio venceu nesses lugares!
5 O maligno, além de lhe sugerir interiormente coisas péssimas, lutou com ele corpo a corpo (Ex 21,14), aparecendo-lhe em forma horrenda.
6 Digo que escolheu intrepidamente esses lugares para vigiar por si mesmo na oração e aí aprendeu primeiro o que depois ensinou aos outros.
7 Aprendeu não a preparar elaboradamente as palavras que devia dizer mas, bebendo fartamente da abundância da doutrina celeste, que vai tão além dos cálculos da erudição humana para, no momento oportuno, falar de dentro ao próximo não tanto com palavras mas com a virtude do Espírito (Rm 15,13).
58.
1 Pois, ainda quando pensava em dizer isso ou aquilo, acontecia que ao chegar para pregar, esquecido de tudo que tinha pensado, ficava sem nada a dizer.
2 Mas então se envergonhava de confessar diante de todos sua falha e assim as palavras começavam a fluir de repente com maravilhosa eloqüência.
3 Assim, punha toda sua esperança só na generosa magnanimidade do Senhor, desconfiando totalmente da própria capacidade; e falava com a mesma constância a muitos ou a poucos, pregava com a mesma diligência a um ou a muitos.
4 Não tinha medo de ninguém, mas falava da mesma forma a sábios e a ignorantes, a grandes e a pequenos.
5Pregou também com muita constância aos cardeais reunidos com o senhor Papa Honório, certamente não tanto com a simplicidade que leva ao riso, mas com o extraordinário fervor de espírito que arranca o gemido da compunção.
59.
1 Por isso, esse homem santíssimo que sabia dividir o tempo utilmente para si e para os outros, afastou-se uma vez das pessoas seculares, como costumava, para dirigir-se a um lugar solitário, levando consigo apenas uns poucos que protegessem a sua tranqüilidade de qualquer tumulto dos que aparecessem.
2 Pois queria ficar por um tempo a sós com Deus e sacudir o pó (Mt 10,14) eventualmente recolhido na convivência com as pessoas.
3 Quando, com uma tranqüilidade da mente um pouquinho mais prolongada, saboreava melhor o fruto da contemplação, desejava conhecer com todo o coração o que deveria fazer para oferecer ao Senhor o mais grato sacrifício de si mesmo.
4 Era já um homem de consumada virtude mas julgava estar apenas começando.
5 Seu maior esforço sempre fora projetar-se para as coisas anteriores e contar como nada o que ficara para trás.
6Desejava suportar de novo todos os sofrimentos corporais e angústias espirituais, para que nele se cumprisse mais plenamente o beneplácito da vontade divina.
60.
1 E como anelava tanto mais contínua quanto mais fervorosamente por esse desejo, um dia foi devotamente ao altar do eremitério em que se encontrava e depôs sobre ele, com reverência e temor, o livro dos Evangelhos.
2 Depois, prostrando-se humildemente em oração diante do altar e com toda a devoção possível clamou ao Senhor (Sl 3,5) para que, na primeira abertura do livro, se dignasse dar-lhe um sinal de sua vontade.
3 No fim, de coração contrito (Sl 50,19), levantando-se da oração (Lc 22,45), muniu-se do sinal-da-cruz, tomou reverentemente o livro que estava sobre o altar e abriu-o.
4 Como a primeira coisa que apareceu foi a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, suspeitou que isso talvez tivesse sido por acaso.
5 Fechou de novo o livro e abriu-o novamente; repetiu o mesmo várias vezes e encontrou a mesma passagem ou alguma semelhante.
6 Diante disso, o intrépido soldado de Cristo não se assustou; e ele que até então era mártir pelo desejo preparou-se com mais ardor para enfrentar tudo o que pudesse suportar por Cristo.
7 E porque por tudo isso, de coração em festa, elevou um cântico de alegria ao Senhor, não muito tempo depois mereceu ter a revelação de um mistério ainda maior.
61.
1 De fato, dois anos antes desse homem bem-aventurado entregar o feliz espírito ao Senhor, morando no eremitério do Alverne, teve uma visão (Dn 8,2) como de um Serafim que tinha seis asas, no ar, pregado numa cruz, com as mãos estendidas e os pés unidos.
2 Tinha duas asas levantadas sobre a cabeça, duas estendidas para voar; as outras duas cobriam todo o corpo (Is 6,2).
3 O santo ficou fortemente espantado com a visão e nele se alternavam sentimentos de medo e de alegria.
4Deleitava-o sua admirável beleza; aterrorizava-o bastante a horrenda fixação à cruz. Mas se alegrava também porque via que ele o olhava sorrindo.
5 Enquanto, ansioso, refletia longamente sobre o significaria a novidade dessa visão, não conseguiu compreender claramente nada,
6 até que viu em si mesmo aquele milagre tão glorioso; um milagre que, no meu entender, é inaudito nos séculos passados.
62.
1 Pois em suas mãos e pés apareciam as aberturas dos cravos (Jo 20,25) e o seu lado direito como perfurado pela lança.
2 No interior das mãos e na parte superior dos pés sobressaía uma excrescência da carne como a cabeça dos pregos.
3 A parte exterior das mãos e a inferior dos pés, porém, traziam sinais alongados, como pontas retorcidas dos cravos que também se destacavam do resto da carne.
4 No lado direito, apareceu uma ferida cercada por uma cicatriz que, com freqüência, sangrava e manchava a túnica e às vezes também a roupa de baixo.
5 Surgindo nele essas pérolas, o homem de Deus fez de tudo para esconder aos olhos dos vivos o precioso tesouro com que o Senhor, por especial prerrogativa, o havia enriquecido; e isso para que não viesse a sofrer o mínimo dano, se alguém viesse a saber por causa de sua familiaridade.
6 Por isso, como muito raramente e a muito poucas pessoas costumava revelar os mistérios, também esses, que nele apareciam tão gloriosamente, foram por muito tempo desconhecidos até por seus familiares.
63.
1 Achando perigoso parecer aos olhos das pessoas como alguém especial e considerando que os bens ocultos de cada um não são maiores do que os que aparecem em público, remoia muitas vezes as palavras do profeta:Escondi no meu coração as tuas palavras, para não pecar contra ti (Sl 118,11).
2 Até havia dado um sinal para os frades que moravam com ele: quando estivesse ocupado com pessoas estranhas e o vissem recitar o referido versículo, deviam cortesmente interromper a conversa, para que não lhe escapasse alguma palavra perigosa.
3 Assim, enquanto viveu no corpo, diligentemente mantida oculta pelo homem de Deus a ferida do lado, só Frei Elias pôde vê-la uma vez, por acaso.
4 Frei Rufino, porém, admitido a fazer-lhe as massagens, sem querer,tocou-a sensivelmente com a mão (Jo 1,1);
5 quando foi assim tocado, o santo soltou um gemido de grande dor e, repreendendo o frade, acrescentou que o Senhor o perdoasse (Is 26,15).