Como Cristo apareceu ao santo Frei João do Alverne e como ele foi arrebatado quando o abraçou.
1 Quão glorioso é o nosso muito bem-aventurado pai Francisco diante de Deus está claro nos filhos escolhidos que o Espírito Santo congregou na sua Ordem, de modo que os filhos sábios são verdadeiramente a glória de tão grande pai.
2 Entre eles, brilhou de maneira especial o santo Frei João de Fermo, que também é chamado Frei João do Alverne, que brilha no céu da Ordem como estrela notável pelo esplendor da graça. 3 Pois ele, visto que em idade jovem trazia pela sabedoria um coração de ancião, desejava com todas as entranhas aprender o caminho da penitência que guarda a pureza do corpo e da mente. 4 Por isso, sendo ainda pequeno, usava cilício e argola de ferro na carne e carregava a cada dia a cruz da abstinência, 5 de modo que, enquanto morava em São Pedro de Fermo com os cônegos, antes de ter recebido o hábito dos frades de São Francisco, vivendo eles esplendidamente, ele se refreava com o rigor de admirável abstinência e celebrava entre as malícias o martírio da abstinência. 6 Mas, como tinha que suportar de muitas maneiras os obstáculos de seus companheiros ao seu esforço angelical, a ponto de o despirem do cilício e de lhe impedirem a abstinência, 7 ele, inspirado por Deus, pensou em abandonar o mundo com os que o amam e ofereceu a flor de sua angélica juventude aos braços do Crucificado.
8 Como recebeu ainda menino o hábito dos frades menores e foi confiado a um mestre para aprender as coisas espirituais, algumas vezes, quando ouvia do mestre palavras divinas, 9 seu coração, como cera derretendo (cf. Sl 21,15), enchia-se de tanta suavidade da graça no homem interior que o homem exterior, obrigado a correr, andava rapidamente por toda parte, uma vez pelo jardim, outra pelo bosque, outra ainda pela igreja, conforme o impelia a chama interior.
10 E, no suceder do tempo, a graça divina elevou este homem angélico em diversos estados e em ações ordenadas para o alto. Às vezes , a graça divina arrebatava este homem admirável aos esplendores dos querubins, à vezes ao fogo dos serafins, às vezes às alegrias dos anjos. 11 E, o que é mais, às vezes o acolhia como amigo íntimo aos ósculos divinos e aos imensos abraços do amor de Cristo não somente em sabores interiores, mas também em sinais exteriores.
12 Por isso aconteceu-lhe certa ocasião que, pelo espaço de bem três anos, inflamado pelo fogo do amor de Cristo, recebia consolações admiráveis e freqüentes vezes em tal ardor era arrebatado para Deus. 13 Mas, porque Deus nutre especial cuidado por seus filhos, ora consolando-os na prosperidade, ora exercitando-os nas adversidades , enquanto o predito Frei João estava em certo lugar, foi-lhe subtraído esse raio e sua situação acesa: ficou sem amor e sem luz e com enorme tristeza
14 Por isso, como sua alma não sentia a presença do amado, inquietava-se e circulava pelo bosque; triste e ansioso, procurando o amigo que se escondera como se um pouco o tivesse dispensado. Mas, de modo algum e em lugar algum, podia encontrar os dulcíssimos e suaves abraços, ou melhor, os felizes ósculos de Jesus Cristo bendito, como costumava. 15 E suportou esta tribulação por muitos dias, lamentando, suspirando e chorando. No entanto, ao andar de dia por esse bosque, em que abrira uma trilha para caminhar, aflito e desolado sentou-se aí encostado numa faia, com o rosto lacrimoso erguido para o céu:
16 Apareceu então aquele que cura os contritos de coração e enfaixa as suas feridas (cf. Sl 146,3), o Senhor Jesus Cristo, no mesmo trilho, mas sem dizer nada. 17 Quando Frei João o reconheceu, jogou-se aos seus pés. E, com gemidos inexprimíveis (cfr. Rm 8,26) pedia-lhe e suplicava-lhe com a maior humildade que se dignasse socorre-lo.
18 "Porque sem vós, dulcíssimo Salvador, fico nas trevas e na tristeza; sem vós, cordeiro mansíssimo, fico em angústias e no terror; sem vós, Filho Altíssimo de Deus, fico em confusões e na vergonha! Pois, sem vós sou despojado de todos os bens; 19 sem vós, estou cego nas trevas, porque vós, Jesus, sois a luz verdadeira das mentes; sem vós, estou perdido e condenado, porque vós sois a vida das almas e a vida das vidas; sem vós, sou estéril e árido, porque vós sois a fonte das graças e dos dons; 20 sem vós estou totalmente desolado, porque vós sois, Jesus, nossa redenção, amor e desejo, pão que não falta e vinho que alegra os coros dos anjos e os corações de todos os santos. 21 Iluminai-me, graciosíssimo mestre e piíssimo pastor, porque sou vossa ovelhinha, ainda que indigna”.
22 E porque o desejo adiado inflama para um amor maior, o Cristo bendito ainda se retirou, andando pela referida trilha, sem lhe dizer absolutamente nada. 23 E Frei João, vendo que o Cristo bendito se retirava e não o atendia, levantando-se de novo com santa importunação, como pobre e indigente (cf. SI 69,6), correu outra vez até Cristo e, prostrando-se humildemente aos seus pés, com devotíssimas lágrimas suplicava, dizendo: 24 “Ó dulcíssimo Jesus, tem misericórdia de mim, porque estou atribulado! (cf. Sl 30,10). Atende-me pela grandeza de vossa misericórdia e pela verdade de vossa salvação (cf. Sl 68, 14), e restitui-me a alegria de vossa salvação (cf. Sl 50,14), porque a terra está cheia de vossa misericórdia (cf. Sl 32,5; 118,64); Sabes que estou intensamente atribulado! Portanto, rogo que socorras depressa minha alma mergulhada nas trevas”.
25 E o Salvador se retirou outra vez, sem dizer nada a Frei João, sem lhe dar nenhuma consolação. Parecia querer retirar-se, andando pela trilha, fazendo, para mais inflamar-lhe o desejo, como uma mãe com o filhinho: 26 ela se esconde do filho que está amamentando, e quando chora procurando a escondida, ela o acolhe depois do choro, abraçando-o e beijando-o, reconhecendo-o na maior doçura. 27 Por isso, Frei João, seguindo o Cristo Jesus bendito pela terceira vez, andava chorando intensamente, como a criança atrás da mãe e o pequeno atrás do pai e o humilde discípulo atrás do misericordioso mestre. 28 Quando chegou até ele, o Cristo bendito voltou sua graciosa face para Frei João e estendeu suas mãos veneráveis, como faz o sacerdote quando se volta para o povo.
29 Então, Frei João viu admiráveis raios de luz que saíam do sacratíssimo peito de Cristo, não só iluminando por fora todo o bosque, mas também enchendo corpo e alma com os divinos esplendores. 30 Por isso, Frei João aprendeu imediatamente a atitude humilde e reverente que deveria ter para com o Cristo. Pois logo se jogou aos pés dele. E o Cristo bendito mostrou-lhe, cheio de clemência, aqueles santíssimos pés 31 em que Frei João derramou tantas lágrimas que quase parecia outra Madalena, rogando que não olhasse para os seus pecados, mas se dignasse ressuscitar sua alma para a graça do amor divino por sua santíssima paixão e pela aspersão do sangue glorioso: 32 "Como é este o teu mandamento, que te amemos com todo o coração e com todas as nossas forças (cf. Lc 10,27; Dt 6,4.5), mandamento que sem vossa ajuda ninguém consegue cumprir, ajudai-me, portanto, amantíssimo Jesus Cristo, para que eu vos ame com todas as forças”.
33 Enquanto Frei João assim orava com insistência, prostrado aos pés do dulcíssimo Jesus, recebeu aí tanta graça que ficou todo renovado, pacificado e consolado, como a Madalena. 34 Então, Frei João, sentindo o dom de tão grande graça, começou a dar graças ao Senhor e a beijar-lhe humildemente os pés, levantando-se para olhar o Salvador com ação de graças. O Cristo bendito apresentou-lhe e estendeu suas santíssimas mãos para beijar. 35 Mas nessa abertura das mãos. Frei João, ao levantar-se, encostou-se no peito do Senhor Jesus; e abraçou Jesus, e Jesus bendito o abraçou.
36 E Frei João, beijando o sacratíssimo peito de Cristo, sentiu tão grande odor divino que, se todos os aromas do mundo se unissem em um, seriam julgados um fedor podre em comparação com aquele odor divino. 37 Além disso, do próprio peito do Salvador saíam os mencionados raios que interiormente iluminavam a mente e exteriormente iluminavam tudo ao redor. 38 E neste abraço, odor e luzes, no próprio peito bem-aventurado de Jesus Cristo, Frei João foi arrebatado, totalmente consolado e admiravelmente iluminado. 39 Pois, desde então, porque bebera da sagrada fonte do peito do Senhor e ficara repleto do dom da sabedoria e da graça da palavra de Deus, mais freqüentemente. proferia palavras admiráveis e inenarráveis. 40 E porque do seu ventre jorravam rios de água viva (cf. Jo 7,38), que ele bebera do abismo do peito do Senhor Jesus Cristo, transformava as mentes dos ouvintes e produzia admiráveis frutos.
41 Além disso, o mencionado odor e o esplendor, que ali sentiu, perduraram por muitos meses na sua alma; e, o que é mais, na trilha do bosque em que os pés do Senhor andaram, ele sentia, num amplo espaço ao redor e por muito tempo, o mesmo odor e esplendor. 42 Quando Frei João voltou a si depois do arrebatamento, como o Cristo bendito tinha desaparecido, ficou sempre consolado e iluminado.
43 E então, não encontrou a humanidade de Cristo, como me contou aquele que o ouviu da boca de Frei João, mas encontrou a sua alma sepultada no abismo da divindade; e isto é comprovado por muitos e manifestos testemunhos. 44 Pois, diante da Cúria Romana, diante de reis e barões e diante de mestres e doutores, proferia tão profundas e altas luzes que convertia todos a admirável estupefação. 45 Posto que o próprio Frei João era um homem quase sem instrução, no entanto, esclarecia admiravelmente as questões mais sutis sobre a Trindade e outros mistérios da Escritura.
46 Mas que, como ficou demonstrado acima, Frei João foi primeiro recebido aos pés de Cristo com lágrimas, depois às mãos com graças e depois ao peito beato com arrebatamento e raios, são grandes mistérios que não poderiam ser explicados com breves palavras; 47 mas quem desejar saber isto leia Bernardo sobre o Cânticos dos Cânticos, porque ali ele expõe esses graus em ordem: o dos iniciantes nos pés, o dos que progridem nas mãos e o dos perfeitos no ósculo e no abraço. 48 O fato de o Cristo bendito ter dado tão grande graça a Frei João sem dizer nada, em nada falando a Frei João, ensina que, como um ótimo pastor, tratava mais de apascentar a alma interiormente com os sentidos divinos do que de encher de barulho os ouvidos da carne com sons exteriores; 49 porque o reino de Deus não está nas coisas exteriores, mas nas mais íntimas. Pois diz o salmista:toda a sua glória vem de dentro (cf. Sl 44,14).
Para o louvor e glória de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.