Actus beati Francisci et sociorum eius - Capítulo 66

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Uma palavra admirável dita por Frei Egídio de Perusa

1 Quando o santo Frei Egídio morava em Perusa, Jacoba de Settesoli, nobre dama romana e mui devota dos irmãos, viera visitá-lo.

Depois, chegou improvisamente Frei Guardião, da Ordem dos Menores, muito espiritual, para ouvir dele alguma boa palavra. 2 Portanto, estando presentes os outros mencionados irmãos, Frei Egídio disse em língua vulgar esta máxima: “O ho­mem, por causa daquilo que pode, chega àquilo que não quer”.

3 E o mencionado Frei Guardião, para provocar Frei Egídio à discussão, disse: “Admiro-me, Frei Egídio, do modo como dizes que o homem, por causa daquilo que pode, chega àquilo que não quer, quando o homem nada pode a partir de si mesmo. 4 E posso provar isso com uma porção de argumentos. Primeiro, porque o po­der pressupõe o ser; então, tal é a ação da coisa qual é o seu ser, assim como o fogo aquece, porque é quente; mas o homem a par­tir de si não é nada. 5 Por isso, diz o apóstolo: Quem pensa ser alguém, quando nada é, engana a si mesmo (cf. Gl 6,3); o que nada é nada pode; portanto, o homem nada pode. 6 Segundo, pro­vo assim que o homem nada pode, porque, se o ho­mem pode algo, ou é em razão só da alma ou em razão só do cor­po ou em razão do conjunto. 7 Em razão só da alma é certo que ele nada pode; porque a alma, privada do corpo, não pode merecer nem desmerecer. Também em razão só do corpo nada pode; por­que o corpo sem a alma está privado de vida e de forma e, por isso, nada pode realizar, porque todo ato provém da forma. 8 Igualmente em razão do conjunto o homem nada pode; porque, se pudesse algo, isto seria em razão da alma que é a forma dele; mas, como já foi dito, se a alma privada do corpo nada pode, mui­to menos unida ao corpo, pois que o corpo que se corrompe torna pesada a alma (Sb 9,15).

9 E te dou um exemplo disso, Frei Egídio: se um burro não pode an­dar sem a carga, muito menos com a carga. Então, por este exemplo, se vê que a alma pode operar menos sobrecarregada pelo corpo do que sem ele; mas, sem ele, nada pode; portanto, nem unida” .

10 E apresentou muitos outros argumentos, mais do que esses, em número de doze, contra o dito de Frei Egídio para provocá-lo à discussão. Todos os que estavam presentes ficaram admirados destes argumentos.

11 E Frei Egídio respondeu: “Disseste mal, Frei Guardião; confessa a tua culpa de tudo!” Frei Guardião, sorrindo, confessou sua culpa; e por esta razão, Frei Egídio, ven­do que não confessara de coração, disse: “Essa confissão de culpa não vale nada, Frei Guardião; e quando a confissão não vale, não sobra nada para o homem recuperar”.

12 E, dito isso, falou de novo: “Sabes cantar, Frei Guardião? Então, canta comigo!” E Frei Egídio tirou de sua manga uma cítara de faia, que os meninos costumam fazer. Começan­do da primeira corda por meio de palavras ritmadas e continuando por cada uma das cordas da citara, anulou e refutou todos os doze argumentos dele.

13 E, começando pela primeira, disse: “Eu não falo sobre o ser do homem antes da criação, Frei Guardião, porque é verdade que então nada é e, portanto, nada pode fazer; mas falo do ser do ho­mem depois da criação, ao qual Deus deu o livre-arbítrio pelo qual pudesse merecer, consentindo no bem, e desmerecer, dissentindo. 14 Por isso, disseste mal e me armaste uma falácia, Frei Guar­dião; porque o apóstolo Paulo não fala sobre o nada da substância nem sobre o nada da potência, mas sobre o nada dos méritos, como diz em outra parte: Se eu não tiver a caridade, nada sou (1 Cor 13,2). 15 Por isso, eu não falei da alma desprendida ou do corpo morto, mas do homem vivo que, consentindo com a graça, pode operar o bem e, rebelando-se contra a graça, operar o mal; o que nada mais é do que deixar de fazer o bem.

16 E o que alegaste, que o corpo que se corrompe torna pesada a alma (cf. Sb 9,15), a Escritura não diz aí que por causa disso tira o livre-arbítrio da alma, de modo que não possa operar o bem ou o mal; mas quer dizer que são impedi­dos o afeto, o intelecto e também a memória da alma ocupada com as coisas corporais. 17 Por isso, continua no mesmo lu­gar: E a habitação terrena oprime o espírito com muita preocupa­ção (Sb 9,15), porque não permite que a alma busque livremente as coisas que são do alto, onde está o Cristo sentado à direita de Deus (cf. CI 3,1), 18 pelo fato que as acuidades das potências da alma, por causa das múltiplas ocupações e também das moléstias do corpo terreno, são retardadas de muitas maneiras. E por isso disseste mal, Frei Guardião”.

19 E igualmente anulou todos os outros argumentos, de modo que Frei Guardião, disse de novo sua culpa de coração e confessou que a criatura pode alguma coisa. E disse Frei Egí­dio: “Agora sim, a culpa vale!” insistiu: “Queres que eu te mostre mais claramente que a criatura pode algo?”

20 E, subindo numa tumba, gritou.com voz terrível: “Ó conde­nado que jazes no inferno!” E ele mesmo respondeu com voz lú­gubre na pessoa do condenado, de modo tremendo e horrendo, que aterrorizou a todos, clamando e lamentando: “Ai! Ai! Ai! Ai!” 21 E Frei Egídio: “Dize-nos por que foste para o inferno”. E ele respondeu: “Porque não evitei os males que pude fazer e deixei de fazer o bem que pude”. 22 E, interrogando-o, di­zia: “Que gostarias de fazer, se te fosse permitido um tempo de penitência, ó condenado malvado?” E respondeu na pessoa dele: “Aos poucos, aos poucos, aos poucos lançaria o mundo todo atrás de mim para escapar da pena eterna, porque isso te­ria fim; mas minha condenação permanece para sempre”.

23 E voltando-se para Frei Guardião, dizia: “Ouves, Frei Guar­dião, que a criatura pode alguma coisa?” Depois disto, disse a Frei Guardião: “Dize-me se a gota de água, caindo no mar, impõe seu nome ao mar ou o mar à gota?” E respondeu que tanto a subs­tância quanto o nome da gota são absorvidos e revestidos com o nome do mar. 24 E, dito isso, Frei Egídio, diante de todos ali presentes, foi arrebatado. Pois entendeu que a natureza hu­mana, que diante de Deus é como uma gota, foi absorvi­da no grande, e até, infinito mar da divindade, na encarna­ção de N. Senhor Jesus Cristo, que é bendito pelos séculos. Amém (cf. Rm 1,25).